No escuro, duas faxineiras iluminam o palco com suas lanternas. Quando a luz se acende, percebe-se o corpo de um homem pendurado no teto, enforcado. É o marido de uma terceira, que logo chega e desfia impropérios contra o marido, de quem se separou – na verdade, o sujeito ali, sem vida. As amigas tentam impedir que a mulher descubra a tragédia, enquanto ela, depois de muita raiva, começa a revelar a ternura que de fato sente pelo marido, confessando até uma vontade de tentar uma reconciliação.

É dessa mistura de surpresa com um texto agridoce, por vezes melancólico, que se constitui a peça A Reunificação das Duas Coreias, que estreia sexta-feira, dia 16, no Teatro MorumbiShopping. Trata-se do conjunto de 18 cenas que, embora independentes entre si, tratam de temas comuns e caros a qualquer ser humano. “É um passeio pelas diversas formas em que o amor, o afeto e a falta deles se manifestam”, declara a produtora Maria Siman, que, fascinada pelo texto, comprou os direitos e logo viabilizou a montagem nacional, dirigida por João Fonseca e interpretada com visível sensibilidade por Leticia Isnard, Bianca Byington, Solange Badim, Marcelo Valle, Gustavo Machado, Veronica Debom e Reiner Tenente – no Rio, Louise Cardoso integrou o elenco, mas, devido às gravações de Malhação, da Globo, não pode vir a São Paulo.

Que o espectador não espere, porém, temas políticos por conta do título – A Reunificação das Duas Coreias trata da temática do amor em suas diversas formas e manifestações. O título é uma licença poética extraída da fala de uma das personagens que explica à mulher sem memória como os dois se amavam quando se conheceram: “Foi como se a Coreia do Sul e a Coreia do Norte abrissem suas fronteiras e se reunificassem e que as pessoas que tinham sido impedidas de se ver durante anos se reencontrassem”.

A Reunificação das Duas Coreias confirma a coerência da obra de seu autor, o francês Joël Pommerat, em sua exigente busca artística sobre as relações humanas e o existencial. É o que pode observar o público brasileiro, brindado com montagens de suas peças. A começar por 2012, com a estreia de Esta Criança, dirigida por Márcio Abreu e estrelada por Renata Sorrah, na qual o autor disseca infelicidades familiares. Já em 2016, a Mostra Internacional de Teatro trouxe, entre seus destaques, dois trabalhos essenciais do francês: Cendrillon, uma releitura do conto de fadas Cinderela, e principalmente Ça Ira, monumental ficção política contemporânea inspirada no processo revolucionário de 1789, na França.

Com A Reunificação, Pommerat trilha por outra estrada: enquanto Ça Ira traz vestígios evidentes de um épico, a peça que chega a São Paulo é marcada pela fragmentação no enredo, com cenas que necessariamente não se fecham, não são continuações, mas se completam. Fala de amor falando do desamor, sempre de maneira inusitada e surpreendente. Como define João Fonseca, “todas as cenas têm nomes emblemáticos – Divórcio, Separação, Casamento. Bom frisar que o diretor evita o lugar comum, o clichê. A forma como aparecem as discussões e a questão do amor é sempre inusitada. Não é porque está na moda, mas eu acho tão necessário e tão bacana falar desse encontro e reencontro”, diz João. Sobre o trabalho, Pommerat respondeu por e-mail as seguintes questões.

Você é um artista que gosta de trabalhar também em fragmentos. Como funciona esse processo caleidoscópico? É mais fácil?

Na verdade, A Reunificação das Duas Coreias é uma sucessão de fragmentos, como pequenos relatos independentes em torno de um tema comum. O fragmento é uma forma que aprecio para capturar um instante de vida, entrar rapidamente na ação, de maneira bastante realista, neste espetáculo. Viver o instante: há aqui alguma coisa própria do teatro e da experiência humana. O fragmento permite também a livre circulação do sentido, o espectador é levado a criar, ele próprio, os elos. De fato, escrevi diversas obras em fragmentos, como A Reunificação das Duas Coreias, ou Cet Enfant, mas gosto também de desenvolver narrativas mais elaboradas como em Ma Chambre Froide, ou a minha última criação Ça Ira – Fin de Louis, uma epopeia inspirada na revolução francesa.

Em A Reunificação das Duas Coreias, cada cena está impregnada de uma desoladora ambiguidade. É esta sua maneira de ver as relações humanas?

Procuro mostrar a complexidade das experiências humanas, portanto existe realmente ambiguidade, ambivalência. Em meu teatro tento evitar a simplificação. Somos feitos de contradições. Hoje o acúmulo de dimensões incompatíveis ou contraditórias é uma grande tendência da nossa relação com o mundo e os outros. O que nos une, o que nos faz existir individualmente e coletivamente? Esta questão da liberdade individual e da coexistência é importante em meu teatro.

A perspectiva da peça parece estar bem resumida na explicação de uma personagem sobre a sua partida: “Amor não é suficiente”. Você concorda?

O que conta é o que você pensa a respeito. Não procuro fazer passar uma mensagem em meus espetáculos. Não coloco na boca dos meus personagens o que penso, minhas ideias mudam muito e são pouco interessantes. O que procuro fazer é apresentar os problemas e girar em torno deles para estimular o olhar, sacudir nossas representações, de uma maneira surrealista.

O senhor acredita que a amargura e o tédio são os grandes males contemporâneos?

Se fossem apenas os únicos males da sociedade contemporânea… Não, há demônios muito mais perigosos atualmente, humanos e políticos.

O senhor exorciza seus próprios medos por meio das suas peças?

A Reunificação das Duas Coreias é, sem dúvida, uma das minhas peças mais íntimas. Com frequência sou atraído para situações extremas porque o teatro é um jogo que nos permite reconstituir a realidade sem sofrê-la. E nos permite manter os olhos abertos face a situações ou sentimentos difíceis.

Que lugar tem o humor em seu trabalho?

Em A Reunificação, eu me permito mais humor do que em espetáculos anteriores. Eu sempre tive medo de que o humor me tirasse da realidade, mas na verdade de modo nenhum isto ocorre como vemos por exemplo nas peças em um ato de Chekhov, uma das minhas inúmeras influências.

Você parece ser um arista que gosta de expor nossas falhas por meio dos personagens. O senhor acha que tem responsabilidade, como artista, de fazer isto?

Não acho que o teatro pode mudar o mundo, mas talvez nosso olhar a respeito dele. A principal responsabilidade que sinto é para com a verdade humana daquilo que represento. Não me sinto verdadeiramente responsável para com o público, que é livre de pensar o que quiser e desejo orientar o menos possível. Por que pensamos que o artista é uma pessoa mais interessante do que uma outra que teria uma mensagem a passar?

A REUNIFICAÇÃO DAS DUAS COREIAS

Teatro MorumbiShopping.Av. Roque Petroni Jr, 1089. 6ª e sáb., R$ 21. Dom., 18h.

R$ 50 / R$ 70.

Estreia 16/9. Até 23/10

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.