O STF suspendeu a presunção de inocência a condenados em segunda instância à pena privativa de liberdade tentando dar à sociedade a sensação de segurança e fim da impunidade. Interrompeu-se uma das maiores conquistas advindas do Iluminismo e provenientes do consagrado common Law (Antonio Magalhães Gomes Filho), cristalizadas em nossa Constituição Cidadã de 1988, e criou-se, pelo avesso, a presunção de culpabilidade (Raffaele Garofalo) no segundo degrau de recursos (tribunais de Justiça). Cabe ressaltar que um dos ministros contrários ao que foi decidido afirmou que cerca de 30% dos recursos extraordinários criminais que desembarcam na Corte (terceira instância) são acolhidos por inteiro – trata-se de réus inocentes condenados nas instâncias inferiores (primeira e segunda). A questão torna-se mais importante quando se expõe, como foi oficialmente divulgada, uma das mais graves mazelas do sistema penitenciário: a população carcerária segue crescendo assustadoramente. O Brasil contabiliza agora 622.202 presos, com a absurda taxa de 44% de encarcerados provisórios. Nos últimos 14 anos, o número de presidiários subiu 167%.

Compreende-se a decisão do STF em um País no qual os processos se arrastavam por décadas com o sentenciado recorrendo em liberdade até que se chegasse ao “trânsito em julgado” – convém lembrar, no entanto, que quanto mais chances um acusado tiver para provar a sua inocência, mais a consciência do Estado poderá dormir tranquila em caso de condenação. Mas já que a Corte fixou uma espécie de presunção de culpabilidade, e diante dos recentes dados divulgados pelo Ministério da Justiça, bom seria se o STF fizesse agora o inverso e tomasse iniciativas de presunção de inocência para os cerca de 274 mil presos provisórios – a maioria sem a adequada defesa técnica, base do devido processo legal. Aí sim estaria dando segurança à sociedade, pois coibiria a arregimentação de tais prisioneiros pelas facções criminosas.

Ao agirem no interior de instituições “totais” e “totalizantes” (Michel Foucault), que representam o Estado no exercício legítimo do monopólio da violência, essas facções também adquirem (de modo mafioso e portanto ferindo o Estado de Direito) a sua “particular legitimidade”. Por que? Porque elas atuam nos espaços que o próprio Estado destinou a si para funcionarem como instituições de reinserção social. O crime organizado, ao arregimentar o preso provisório, quebra a racionalidade do Estado enquanto “Idealtyp” do monopólio da violência (Max Weber) e cria as suas próprias regras de presunção de inocência e de culpa. Exemplo: se um presidiário provisório apanhar droga com facções e não conseguir saldar a dívida porque não soube revendê-la, ele é “julgado” como “mau negociante”, porém presumivelmente “inocente”; se não repassar a droga porque a usou, presume-se “culpa” porque é “viciado” e tem de ser “castigado”. O crime organizado inverte, com perversão, a racionalidade da lei do Estado pela qual o “traficante tem de ser punido e o usuário, medicamente tratado.

Há outro ponto a revelar um duro impasse: se por um lado o encolhimento da presunção constitucional de inocência pretende diminuir a impunidade, por outro ele pode aumentar o risco de presos provisórios serem considerados, precoce e injustamente (se inocentes), presos definitivos, seguindo-se aqui o princípio de que no Brasil, muitas vezes, “la ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos” (José Jesus de La Torre Rangel). Isso também concorre irreversivelmente para aumentar o contingente de institucionalizados que é jogado nos braços ilegais das presunções de culpa ou inocência impostas a seu modo pelas facções. Existe o perigo, assim, de assistirmos a uma maior falência do Leviatã-carcereiro, uma vez que as regras do crime organizado o corroem no próprio território do Estado – as penitenciárias.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ