Começa com música – Strangers in the Night. Quem cantava o hit de Frank Sinatra na velha redação do jornal O Estado de S. Paulo, na Rua Major Quedinho, Centro de São Paulo, era o diagramador Gellulfo Gonçalves, Gegê. Ia nisso certa ironia – os ‘estranhos da noite’ eram os censores que, a partir da promulgação do Ato Institucional nº 5, se instalaram na redação do jornal. A censura no Estadão – e a resistência do jornal ao regime cívico-militar – viraram até matéria no The New York Times. Em cima desse fato histórico, o jornalista José Maria Mayrink escreveu o livro Mordaça no Estadão. Com roteiro do próprio Mayrink e farta documentação encontrada no Acervo Estadão, implacável arquivo do jornal centenário, o cineasta Camilo Tavares fez o documentário Estranhos na Noite, que estreou no dia 20 de fevereiro, no Memorial da Resistência.

Desde então, o filme teve um certo número de exibições seguidas de debates. Nesta segunda, 22, Estranhos na Noite amplia seu público ao estrear na TV paga, no Canal Brasil, às 22 horas. Estão previstas três reprises – na quarta, 24, 13h30; domingo, 28, às 18 horas; e na madrugada de sábado, 10 (de setembro), às 05h35. Há um pensamento de esquerda que não anda muito satisfeito com a forma como a imprensa tem tratado o processo de impeachment. O Estado tem uma clara posição a respeito, expressa em sucessivos editoriais. Se for contra e se pautar por isso, o espectador – o cinéfilo – estará perdendo uma rara oportunidade de refletir sobre o papel da imprensa na história do País.

Camilo Tavares é filho de Flávio Tavares. O pai jornalista integrou a lista dos presos políticos trocados pelo embaixador dos EUA. Flávio foi para o exterior e, sob pseudônimo, tornou-se correspondente do Estado. Mais tarde, virou editorialista. Pai e filho sobreviveram para contar essa história. O filme é um épico sobre a imprensa. Um dos entrevistados, Fernando Mitre, destaca a grandeza do jornal, com uma sutil ressalva – ‘naquela época’. Face aos censores, o Estadão não se curvou. Criou formas – publicando receitas ou os versos dos Lusíadas, de Camões, substituindo as páginas censuradas – para alertar seus leitores.

O jornal, que apoiara o golpe, dele se distanciou. Tornou-se crítico. Outras publicações se beneficiaram e até mancomunaram, cedendo carros para mascarar o transporte de presos e as torturas – denúncia de outro documentário, Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski. No Estadão, Julio de Mesquita Filho enfrentou e afrontou os censores e os militares. Seu editorial Instituições em Frangalhos foi considerado a pedra de toque que desencadeou o AI-5. A atitude altiva, em defesa das instituições e da imprensa, prosseguiu com Julio de Mesquita Neto e Ruy Mesquita, que interpelavam ministros (o da Justiça, Alfredo Buzaid) e chefes militares, indo aos quartéis acompanhando jornalistas intimados a depor.

O filme conta essa história lindamente. Camilo Tavares usa vasta pesquisa iconográfica (em parceria com o Acervo Estado), faz entrevistas (com jornalistas como Carlos Chagas, Oliveiros S. Ferreira, Roberto Godoy etc) e ainda usa os depoimentos de duas atrizes, Irene Ravache e Eva Wilma. “Elas entram como licenças poéticas”, explicou o diretor ao repórter. Eva recita versos de Antígona, a imortal peça de Sófocles sobre a filha que acompanhou Édipo no exílio. O filme é sobre essa particular forma de exílio – a resistência, que isola, no próprio País. Os censores não são demonizados. Camilo encontrou fotos desses funcionários da repressão no Acervo Estadão. Seriam cômicos se a história não fosse trágica. Um, encarregado por seu chefe de ler as matérias nas entrelinhas, em busca de sugestões incriminatórias, foi perguntar ao diretor de redação onde eram as tais ‘entrelinhas’. Um outro, expulso por Dr. Ruy de seu gabinete, foi chorar dizendo que aprendera a ler com o Estado e agora se sentia excluído. A infinita miséria humana. Camilo Tavares tem mapeado a história do País sob os militares. Espera prosseguir nessa via com a segunda parte de O Dia Que Durou 21 Anos, para o qual está captando. Estranhos na Noite é um capítulo honroso dessa história. O filme não só é digno como emocionante, e o diretor gostaria que desse debate sobre o jornalismo de ontem, nascesse uma reflexão sobre o de hoje.

Acervo

Durante o trabalho de reorganização da reserva técnica do Acervo Estadão, informa o responsável Edmundo Leite, foram descobertas 114 páginas censuradas inéditas. Representam um acréscimo de 10% ao número de notícias censuradas conhecidas até então (1136). Esse material foi localizado em meio a 734 flans (cartolinas com a pré-impressão) de páginas censuradas do Estado, que estavam empacotados e lacrados desde 1995, quando foram resgatados e limpos, depois de passar outros 20 anos (desde 1975) em espaços dispersos no prédio do jornal. As páginas eram dadas como perdidas pela professora Maria Aparecida de Aquino, autora do primeiro grande estudo (na USP) sobre a censura no Estadão.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.