Os dois têm o mesmo sobrenome, mas, como é comum no Brasil, o possível parentesco se perdeu entre as gerações. Hoje, um, Carlos Lopes dos Santos, é aluno do primeiro ano de ciências biológicas da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (Uems) e processa por crime de racismo o outro, Adriano Manoel dos Santos, seu professor de física. Carlos, aprovado pelo sistema de cotas raciais adotado pela universidade no ano passado, se sentiu ofendido com piadas feitas em classe pelo professor. “Eram comentários que denegriam. Estamos na universidade, onde se espera que o professor respeite a diversidade”, diz o aluno. Adriano, que não quer se pronunciar antes do término do processo administrativo instaurado na universidade, se limita a dizer que não tem nada contra o rapaz. “Espero que tudo se resolva da melhor forma possível”, afirma.

O estudante conta que, depois de pedir três vezes retratação ao gerente do campus da cidade de Ivinhema, a 270 quilômetros de Campo Grande, onde estuda, deu queixa na Polícia Civil. E, acompanhado de seu advogado e de lideranças do movimento negro, solicitou ao governo do Estado o afastamento do professor. O que não aconteceu. Eles queriam evitar que, com o poder do cargo, Adriano influenciasse os alunos. “O delegado ouviu duas testemunhas do Carlos e sorteou outras cinco. Todas confirmaram o seu depoimento, mas agora há notícias de um manifesto em prol do professor”, relata Hédio da Silva Júnior, advogado e coordenador do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), de São Paulo.

Para o procurador jurídico da universidade, Gassen Zaki Gebara, o afastamento do professor não foi necessário. “Nossa política é pioneira e não vamos fechar as portas a eventuais denúncias. Mas entendemos que a presença do professor não atrapalha as investigações”, declara Gebara. Na avaliação de Silva Júnior, a posição da universidade exige uma atitude mais efetiva. Além de um processo por danos morais e materiais, ele prepara uma ação civil pública. “O governo tem de criar meios de preparar a universidade para receber os cotistas e de mantê-los estudando. Alguns precisam de ajuda para alimentação, transporte e livros”, argumenta.

Procedente ou não, o caso de Carlos mostra que há muito o que discutir ainda sobre a democratização do acesso à universidade. E reforça a percepção de que comportamento não se muda por decreto. “A cota não é a solução perfeita, mas é uma ação necessária para reparar a perda social dos negros e de seus descendentes. Eles são quase metade da população brasileira, mas só 14% estão na universidade”, defende Débora Silva Santos, consultora de Políticas de Gênero e Raça da Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação.

Mas a discussão teórica do tema provocada pelas cotas é insuficiente para mudar o dia-a-dia. A universidade em questão é elogiada por não restringir o processo de implantação das cotas aos muros da faculdade. “A Uems chamou o movimento negro e formou uma comissão para analisar a inscrição dos cotistas, que foram selecionados pelo fenótipo (características de um indivíduo). E só entrou quem alcançou a nota mínima exigida para todos”, atesta Vander Aparecido Nifhijima, do Movimento Negra Atitude. O presidente do Conselho Estadual dos Direitos do Negro de Mato Grosso do Sul, Naércio de Souza, indica que outras ações são necessárias. “Os professores não estão preparados para lidar com a temática racial. É preciso capacitá-los”, diz.

Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, primeira a adotar a reserva de vagas, a sub-reitoria de graduação diz não ter registrado resistência da comunidade acadêmica, mas a manutenção dos cotistas é um desafio. Para preencher lacunas de aprendizado, foi criado um programa de iniciação acadêmica com atividades de português, inglês, matemática, química, física e informática. E há também dificuldades financeiras. “O dinheiro do governo previsto para bolsas-auxílio e manutenção, R$ 8,75 milhões, não chegou. A promessa é de que R$ 4,5 milhões saiam até o final do ano”, reclama a sub-reitora Raquel Villardi. Segundo ela, apesar de não ser nada alarmante, o desempenho dos alunos cotistas não é o mesmo dos outros. “Eles são aplicados e aproveitam a oportunidade de forma tocante. Mas a situação social tem seu peso.”

A Educafro, que desde 1997 oferece cursos pré-vestibulares para afrodescendentes de baixa renda, mostra um outro lado da questão. “A PUC do Rio já divulgou estudos que mostram que ao entrar os alunos negros estão nos últimos lugares, mas ao sair ocupam os primeiros”, rebate frei David Santos, coordenador da ONG. Em um convênio que a Educafro mantém com Cuba, os alunos também não decepcionam. “Temos 31 bolsistas fazendo medicina na Escola Internacional de Havana com ótimos resultados”, afirma o frei. O desempenho de alunos cotistas, enfim, é outro recorte dessa polêmica.