No flexível código da política, todo risco vale a pena, desde que se chegue ao destino final: o poder. Na eleição municipal, todos os partidos foram pródigos nas costuras de alianças esdrúxulas. Mas a manobra mais radical coube ao PT, que acabou constrangido ao se ver obrigado a pegar uma carona perigosa. Para tentar manter a Prefeitura de São Paulo, os petistas já haviam esticado o polegar na estrada para o ex-inimigo histórico Paulo Maluf (PP), de olho em seus 734.580 votos amealhados no primeiro turno. Uma atitude ousada para um partido que sempre se disse diferente dos demais e que construiu sua história ostentando a bandeira da coerência. Maluf – que nasceu pelas mãos da ala mais à direita da ditadura militar e criou-se como inimigo figadal dos petistas – parou sua moto e ofereceu a garupa à prefeita Marta Suplicy (PT). “Eu quero o voto de todos os eleitores malufistas e do próprio também”, afirmou a prefeita, na primeira semana de outubro. “Os pecados de Marta não existem mais para nós”, afirmou o deputado federal Severino Cavalcanti (PP-PE), um dos que mais brigaram com a petista no plenário da Câmara dos Deputados.

Mas o momento para anunciar esse apoio não poderia ter sido mais infeliz para os petistas. Na mesma semana em que divulgou nota anunciando seu voto em Marta, Maluf foi indiciado pela Polícia Federal sob a acusação de cinco crimes e prestou depoimento na promotoria criminal de São Paulo sobre suposta tentativa de corromper testemunha judicial, como revelou ISTOÉ. O PT acabou num beco sem saída. Não tinha como rechaçar o apoio de um político que acabara de ser indiciado pela PF e ainda sob a suspeita de mais uma denúncia. Foi dividido e muito constrangido assim que o PT recebeu a adesão de Maluf. Os petistas pragmáticos defendem o apoio ostensivo do ex-prefeito para tentar convencer o eleitorado malufista de que o PT não é mais um bando de xiitas e baderneiros, como insistiu Maluf durante tantos anos. “Uma declaração de voto dele (Maluf) é importante para muita gente na cidade e já estamos mostrando que temos propostas comuns”, afirmou o presidente municipal do PT, deputado Ítalo Cardoso. Uma delas, defendida por Maluf e agora encampada por Marta, é o fim da taxa dos motoboys. “Marta está se compromentendo a adotar vários itens do programa de Maluf. O fim da taxa de motoboys foi uma delas”, contou o presidente nacional do PP, deputado federal Pedro Corrêa (PE).

Mas boa parte dos petistas está convicta de que o apoio do ex-prefeito é um verdadeiro presente de grego, com potencial tão arrasador como o cavalo-de-tróia. Afinal, Marta acabou perdendo votos de potenciais eleitores anti-malufistas. Além disso, pesquisa Datafolha revelou que, entre os eleitores de Maluf, 70% estão dispostos a votar em Serra e apenas 13% desejam votar em Marta. Em 2002, na campanha para o governo do Estado e para a Presidência, Maluf pela primeira vez anunciou seu voto ao PT: em José Genoino e em Lula. Mas a maioria esmagadora dos eleitores malufistas desobedeceu a orientação de seu líder e votou no tucano Geraldo Alckmin. Nos bastidores comenta-se que havia um pacto de não-agressão entre o PT com Maluf desde o primeiro turno, o que é negado por ambas as partes: o ex-prefeito não atacaria Marta e, em troca, dentro dos limites legais, ele seria poupado na CPI do Banestado, que investiga desvio de dinheiro para o Exterior. Maluf fez de Serra o seu alvo preferencial. Mas o fato é que houve acordos políticos concretos entre PT e PP. Ficou acertado que no segundo turno o PT apóia o PP de Maluf em Florianópolis (SC), contra os tucanos, e em Uberlância (MG), contra o PL do vice de Lula, José de Alencar. Já o PP apóia os petistas em São Paulo, Cuiabá e Vitória, em duelos contra os tucanos. “Saímos dessa eleição no primeiro turno como o quarto maior partido em número de prefeituras conquistadas. Foram 550”, gabou-se Pedro Corrêa. Ele dá a senha para uma das várias cobranças pós-eleitorais ao presidente Lula, que planeja sua segunda reforma ministerial. “Queremos o tratamento de acordo com o nosso tamanho. Há partidos com ministérios que são menores do que o PP”, cobrou o presidente do partido. Oriundo da extinta Arena dos tempos do regime militar, Pedro Corrêa prega o apoio eleitoral ao PT pela primeira vez, ao defender que Maluf anunciasse seu voto a Marta. Em 2002, na campanha presidencial, Corrêa apoiou Serra contra Lula. Ideologia? “Direita e esquerda hoje é sinal de trânsito”, resumiu.

Mas quem vê hoje a ira malufista na direção dos tucanos não imagina que o mesmo Maluf foi cabo eleitoral dos tucanos, como em 1994, quando votou em Mário Covas para governador no segundo turno contra Francisco Rossi (então no PDT). A promiscuidade nos apoios políticos é tamanha que é tratada até com ironia. “Covas, Serra e Alckmin foram no palanque de Marta, não foram? Por que agora é pecado eu ir no palanque de Marta? Agora ela não presta?”, questionou Maluf, dias antes de lançar a nota de apoio à petista, na sexta-feira 15, na qual diz que São Paulo “corre um grande perigo se ele (Serra) ganhar a eleição” e afirma que o tucano vai “abandonar a prefeitura para novamente ser candidato em 2006”. E finaliza, tentando influenciar seus seguidores: “Vou votar na Marta para derrotar o Serra.”

Geléia geral – Mas os tucanos também chegaram a flertar com Maluf logo após o primeiro turno. Ao responder se aceitaria Maluf no palanque dos tucanos, Aloysio Nunes Ferreira, um dos coordenadores da campanha de Serra, comentou: “Por que não? Eu não faço política na base da exclusão. O Paulo Maluf é uma liderança muito personalista, que tem um capital de votos muito alto.” Mas, com Maluf em desgraça, Serra acabou afirmando que não iria dividir o palanque com o ex-prefeito. Na geléia geral dos namoros políticos, a seção paulistana do PV do ministro da Cultura, Gilberto Gil, pulou para os braços de Serra, causando um constrangimento que obrigou Gil a declarar seu apoio a Marta. A prefeita também ficou a ver navios com dois outros partidos da base aliada do governo Lula, que declararam neutralidade em São Paulo. Um deles foi o PMDB – que ela mesma desprezou ao recusar o presidente nacional da sigla, Michel Temer, como seu vice. O outro foi o PSB de Luiza Erundina. A ex-prefeita também ousou nas alianças ao coligar-se com o PMDB do ex-governador Orestes Quércia, tendo como vice o próprio Temer. A cartilha política do ex-presidente Getúlio Vargas parece ser seguida até hoje. “O político não pode ter amigos dos quais não possa se separar, nem inimigos dos quais não possa se aproximar”, dizia.

Serra está numa situação tranquila. Além de ter chegado ao segundo turno com quase oito pontos peorcentuais de vantagem em relação a Marta, o tucano não precisa mexer um dedo para receber a maior parte dos votos dos malufistas, que durante décadas se acostumou a odiar o PT. Há apenas quatro anos, Marta e Maluf se atracavam em público, no segundo turno da disputa municipal. Uma pesquisa detalhada nos arquivos de jornais e revistas revela xingamentos e acusações de alto calibre entre as partes. Maluf já chamou os petistas de tudo: assaltantes de cofre municipal, espertalhões, terroristas, incultos, ignorantes, burros, oportunistas. O ex-prefeito lançou muitas vezes sua língua ferina na direção de Marta: chamou-a de grã-fina, arrogante, professora de sexo, despreparada, disse que ela tem uma lista telefônica de defeitos, que tem o hábito de mentir e de caluniar, e até mandou-a ficar quietinha durante um debate televisivo.

Marta não deixou por menos: já chamou-o de nefasto, mitômano (pessoa com mania de mentir), representante do machismo, acusou-o de usar métodos nazistas e de discriminar homossexuais, disse que a corrupção tem como nome o verbo malufar e também perdeu a paciência durante um debate de tevê ordenando: “Cala a boca, Maluf.” Mas os insultos não são exclusivos da fauna política tupiniquim. Benjamin Disraeli, primeiro-ministro britânico conservador na segunda metade do século XIX, já explicava os códigos de conduta da categoria: “Na política nada é sujo demais.”