Sempre que a imprensa estrangeira trata da escalada da criminalidade no Rio de Janeiro, é a mesma coisa. Governantes e autoridades enchem-se de brios, reclamam, esperneiam. Não foi diferente com a reportagem do jornal britânico The Independent, publicada na terça-feira 12, que parte da morte do traficante José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, ocorrida há duas semanas, para alinhavar fatos requentados e teses discutíveis sobre a violência na cidade. “Nossa política tem sido enfrentar duramente o tráfico de drogas. Os autores da reportagem não consultaram uma autoridade sequer”, afirmou em nota a governadora Rosinha Matheus. O prefeito César Maia atribui a notícia à competição por turistas. “Quando o turismo cresce por aqui, os concorrentes se mexem”, avalia. Apesar de alguns exageros do texto, uma sucessão de ocorrências recentes mostra, no entanto, que o título “Cidade da cocaína e da carnificina”, escolhido para a matéria, não é tão despropositado. Há dez dias, uma guerra entre bandidos expulsa os moradores da favela de Vigário Geral, que fogem sob os olhos omissos da polícia. No início de outubro, duas cabeças decapitadas foram encontradas próximo à estação do metrô em Acari, zona norte. Na terça-feira 12, traficantes mataram a tiros dois PMs, elevando para 102 o número de policiais mortos em serviço este ano. A rotina de tragédias é acompanhada sem reação pelos governantes estaduais e federais, que carecem de uma mínima estratégia de ação. Em meio a essa pasmaceira, a reportagem do jornal inglês deveria servir ao menos para lembrá-los do quanto é urgente a tarefa de criar um verdadeiro plano – tantas vezes prometido – de combate ao crime.

Estudioso de segurança pública, o sociólogo Glaucio Soares, do Instituto de Pesquisas Universitárias do Rio de Janeiro (Iuperj), credita essa falta de planejamento ao déficit de pesquisas. “Não há conhecimento sobre o tema. Um plano de ação consistente deve partir do factual, não pode ser na base do eu acho”, critica. Glaucio lamenta que os estudos acadêmicos não sejam levados em consideração na criação de políticas de segurança. “Alguns policiais tratam os cientistas com ironias.” A falta de uma política nacional de segurança foi justamente a crítica feita por integrantes do governo atual ao trabalho do antecessor Fernando Henrique Cardoso. Lula começou sua gestão dando indícios de que trataria a questão de forma diferente. No início do ano passado, o Ministério da Justiça tomou para si a responsabilidade sobre o destino do traficante Fernandinho Beira-Mar, e o ministro Márcio Thomaz Bastos anunciou a construção em regime de urgência de cinco presídios federais e a elaboração de uma política eficaz para combater a criminalidade. O ritmo da construção dos presídios nada tem de urgente. “O governo já iniciou a construção de dois e entregará cinco até o fim do ano que vem”, prometeu Thomaz Bastos. Quanto à política de segurança, fica devendo. Com o governo do Rio, o problema é o mesmo. Ao anunciado investimento de R$ 2,8 bilhões na segurança pública em 2004, a governadora Rosinha Matheus não associou nenhuma estratégia comprovadamente eficaz.

Diante da descoordenação, o crime prospera e a polícia se vê perdida. Cansados de servir de alvos na temporada de caça empreendida pelos traficantes, policiais militares promoveram um inédito protesto na terça-feira 12, depois que o sargento Arthur Guedes Freire e o soldado Adriano Reis de Moura morreram metralhados à beira de uma favela no bairro de Inhaúma, zona norte. PMs do 3º Batalhão (Méier) resolveram voltar ao quartel, deixando sem policiamento 565 mil moradores de 23 bairros. Fabiano Moura, irmão do soldado assassinado, denunciou que ele não usava equipamento adequado. “Isso aqui é apenas um disfarce, sem nada dentro”, afirmou, apontando o colete à prova de balas que o irmão usava. A paralisação durou menos de uma hora, mas o episódio produziu frases reveladoras. “Alguma coisa tem de ser feita por nós, também temos família para cuidar”, declarou aos microfones um soldado que não se identificou. O encarregado de falar pela PM, coronel Aristeu Leonardo, anunciou providências: “O comando está preocupado em dar rotatividade ao policiamento. Queremos evitar que as viaturas fiquem paradas para não virarem alvos fáceis.”

Aterrorizados com o poder de fogo dos criminosos, os policiais estabeleceram como missão prioritária manterem-se vivos. É esse medo que impede a polícia de intervir nas guerras de traficantes, como a de Vigário Geral, onde os bandidos expulsaram dezenas de famílias de casa. A PM limitou-se a dar cobertura à fuga. O vácuo de poder em Vigário Geral chegou a tal ponto que os traficantes afixaram cartazes anunciando sua própria campanha de desarmamento (do grupo rival). “Procura-se armas do ‘bonde do João’. Recompensa de 1000,00 a 5000,00 reais. Fuzil 5000,00, pistola 1000,00.” A seguir, graças à confiança na impunidade, o cartaz informava telefones para contato.

Em meio ao caos, as forças da lei se perdem no front de batalha, mas, volta e meia, dão mostras de coragem e eficiência. Na madrugada da quarta-feira 13, numa operação sigilosa, uma equipe de 11 policiais civis localizou o traficante mais procurado do Rio, Irapuan David Lopes, o Gangan. No tiroteio, o chefão do tráfico em 11 favelas morreu com vários balaços no abdome. Gangan foi surpreendido no Morro da Mineira, do qual era “dono”. Ele recebia a proteção de policiais que cobravam até R$ 4 mil pelo serviço. A Polícia Federal também botou o bloco na rua, mas não se sabe até quando. Na quinta-feira 14 deflagrou a Operação Esteira Limpa, com mais de 200 agentes mobilizados para desarticular quadrilhas de tráfico internacional de drogas no Sudeste. Entre os presos estava Ricardo Valente, diretor da escola de samba Grande Rio. As duas operações tiveram êxito, mas não passam de ações isoladas, que não caracterizam um planejamento permanente. “O tráfico funciona em redes. Quando se mata um dos chefões, outro rapidamente o substitui e tudo continua na mesma”, avalia a antropóloga Alba Zaluar, da Uerj. “A estratégia de buscar um elemento até prendê-lo ou matá-lo não é eficiente.” Para enfrentar essa rotatividade é preciso, além de vontade política, ter do lado da lei cabeças pensantes. E essa carência parece muito maior do que a crônica falta de armas e viaturas policiais.

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