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OBSESSÃO
Durante 40 anos Freud comprou uma obra por semana.
Ele colocava as preferidas na escrivaninha e as acariciava

Na juventude, o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), foi contemporâneo do impressionismo. Mas ele detestou a revolução sensorial promovida pelo grupo de Pierre-Auguste Renoir e Édouard Manet. Quando suas descobertas a respeito da mente humana começaram a ser divulgadas e suas teorias sobre o inconsciente e o papel da libido liberaram a criatividade dos artistas, Freud continuou reticente em relação à arte de seu tempo. Os surrealistas, por exemplo, que o tinham como grande inspirador, eram rotulados de “completamente loucos”. Ou seja: Freud era avançado nas ideias, mas conservador nas formas. Só tinha olhos para a arte clássica dos egípcios, gregos, romanos e, no máximo, chineses de dinastias bem remotas. Era uma paixão tão intensa, quem sabe neurótica, que o levou a reunir, em quatro décadas, cerca de 2,5 mil peças arqueológicas dessas civilizações, que abarrotavam seu escritório à rua Bergasse, 19, em Viena. Ao mudar para Londres por causa do nazismo, esses vasos, estátuas, relevos, bustos (muitos bustos), papiros e pedras preciosas foram na mudança e hoje fazem parte do acervo do Museu Freud. Algumas dessas preciosidades acabaram sendo doadas por sua filha Anna para o Museu Sigmund Freud em Viena. A história desse amor pelos belos artefatos da Antiguidade vem agora à tona porque a historiadora de arte australiana Janine Burke resolveu estudá-la em detalhes no livro “Deuses de Freud – A Coleção de Arte do Pai da Psicanálise” (Record). A obra revela não só os seus gostos, mas a série de idiossincrasias que sempre acompanham a vida dos gênios.

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A primeira marca do Freud colecionador é o ciúme que tinha de suas aquisições. Em vez de distribuí-las pela casa para que todos pudessem apreciá-las, ele as deixava escondidas no escritório. As preferidas, com uma estátua da deusa grega Atena à frente, ficavam na escrivaninha, perto o suficiente para que ele pudesse tocá-las enquanto seus pacientes narravam suas neuroses recostados no divã, no aconchego de um raro tapete persa. Freud gostava de acariciar suas obras de arte e, por isso, preferia as esculturas às pinturas. “Eu preciso ter sempre um objeto para amar”, disse certa vez ao colega Carl Jung. Ao entrar pela primeira vez no consultório, o russo Sergei Pankejeff, célebre paciente de Freud que lhe inspirou o texto “O Homem dos Lobos”, teve a sensação de estar num gabinete de arqueólogo, tamanha a variedade de “estatuetas e objetos incomuns (…) de épocas há muito extintas”. Ao que Freud teria comentado: “O psicanalista, como o arqueólogo, deve descobrir uma camada após a outra da mente do paciente, antes de alcançar os tesouros mais profundos e valiosos.”

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"Para Freud, as estátuas o ajudavam a estabilizar
uma ideia nova e a evitar que ela lhe escapasse"

Trecho do livro “Deuses de Freud”

Para surpresa de seus seguidores, Freud dizia que tinha lido mais sobre arqueologia que sobre psicologia. Essa provocação explica a origem do método psicanalítico, mas não responde à pergunta básica: como certas peças atuaram na elaboração de certos conceitos caros à psicanálise? Freud possuía uma série de representações em terracota de Eros, deus grego do amor, que inspiraria a pulsão de vida no texto “O Mal-Estar na Civilização”. Outra figura que o impressionava bastante era a esfinge, monstro com corpo de leão, cabeça e seios de mulher e asas de águia. Ela aparece na peça “Édipo Rei”, que serviu de base à sua teoria do Complexo de Édipo. Freud comprou todas essas obras de arte nas viagens que fez pela Itália, França e Grécia. Para não ser incomodado, permitia apenas a companhia do irmão Alexander, que reclamava bastante da sua ansiedade de turista erudito. Ele gostava de fazer os trajetos a pé, queria ver todos os monumentos e museus ao seu alcance e andava muito rápido, sempre à espreita de algum estabelecimento com a placa: loja de antiguidades. No início, começou a comprar cópias em gesso, mas ao ganhar mais dinheiro com a psicanálise passou às peças autênticas, muitas adquiridas no mercado negro. Chamava-as de “meus deuses velhos e encardidos”. Ao final da vida, acometido de câncer na boca, teria dito que só teve um vício maior que a arte: o tabagismo.

Leia abaixo trecho da introdução de “Deuses de Freud – A Coleção de Arte do Pai da Psicanálise”

Posso dizer que não sou um especialista em arte, apenas um leigo…
Entretanto, as obras de arte exercem um efeito poderoso sobre mim.
Sigmund Freud

Um homem normal, sem complexos, tem poucas chances de se
tornar um grande colecionador.
Maurice Rheims

Freud não estava sozinho quando entrou no mar dos sonhos.
Seus companheiros eram deuses do Egito, da Grécia e de Roma.
No final dos anos 1890, enquanto escrevia A interpretação dos sonhos, Sigmund Freud se tornou um colecionador de arte, desenvolvendo uma obsessão por antiguidades, beldades, mitos e arqueologia que o levou a reunir um magnífico acervo particular de mais de dois mil vasos, estátuas, gravuras em relevo, bustos, fragmentos de papiros, pedras preciosas e ilustrações. No estúdio de Freud, na Berggasse, 19, em Viena, todo espaço disponível estava tão apinhado de antiguidades que ele mal podia se locomover.
Apesar da afirmação modesta de Freud de que era “simplesmente um leigo”, seu gosto era preciso e sagaz. Sua coleção é um intrigante catálogo de civilizações do mundo, no qual são expostos objetos raros e sagrados, úteis e arcanos, devastados e fascinantes: ferramentas neolíticas, delicados brasões sumérios, uma grande deusa da Idade do Bronze, bandagens de múmias egípcias com fórmulas mágicas gravadas e manchadas de óleo usado em embalsamamento, magníficas estátuas da Grécia helenística, imagens de esfinges, amuletos eróticos romanos, luxuosos tapetes persas e leões de jade chineses menores do que o punho de um bebê.
A famosa imagem de Freud como um homem austero, distante e hostil é contestada por essa coleção, que revela uma personalidade bem diferente: um esbanjador impulsivo e hedonista, um esteta culto e exigente, um saqueador de tumbas no frequentemente ilegal negócio de antiguidades, um turista que se revelou por meio de viagens sensuais pelo Mediterrâneo, um homem generoso e esbanjador que comprava presentes raros para sua família e seus amigos, além de se mostrar um negociante inflexível. Embora Freud prescrevesse a viagem intensa e interior da psicanálise para seus pacientes, sua terapia pessoal era fazer compras. Arrumando alguns itens de sua coleção sobre a escrivaninha, Freud confessou a Jung: “Eu preciso ter sempre um objeto para amar.”
A coleção oferece múltiplas leituras: como a encarnação das teorias de Freud; uma investigação e celebração das culturas antigas; um exercício de estética; uma busca da excelência; uma lembrança de viagens reais e imaginadas; um catálogo de desejos e um autorretrato.
Freud comprou sua primeira obra de arte em 1896, pouco depois que seu pai, Jacob, morreu. Ele ficou abalado com o acontecimento. “No fundo [de mim] mesmo”, refletiu ele, “… agora me sinto totalmente desarraigado.”4 A morte de Jacob provocou uma crise durante a qual Freud mergulhou no seu próprio inconsciente, nas alcovas subterrâneas de seu eu sepulto. A interpretação dos sonhos foi o resultado dessa dolorosa e estimulante jornada de autoanálise, a pedra fundamental da obra de sua vida. Para Freud, o luto e a arte foram aliados nesta transição crucial.
Os pacientes se surpreendiam ao serem conduzidos ao seu consultório pela primeira vez. Sergei Pankejeff, o Homem dos Lobos, não sentiu como se estivesse no consultório de um médico, mas no gabinete de um arqueólogo, cercado por “todo tipo de estatuetas e outros  objetos incomuns, nos quais mesmo um leigo reconheceria descobertas arqueológicas do antigo Egito”. Aristocrata russo, Pankejeff contara a Freud seu sonho sobre uma árvore repleta de lobos brancos. Escrevendo sobre este caso, Freud deu a Pankejeff o pseudônimo de o Homem dos Lobos. Para Pankejeff, os artefatos de “épocas há muito extintas” criavam a sensação de se estar num santuário, um “sentimento de paz e sossego sagrados… Tudo ali contribuía para dar a impressão de se estar deixando a pressa da vida moderna para trás, de se encontrar protegido de suas ansiedades diárias”.
Hilda Doolittle, a poeta conhecida como H.D., ficou estupefata.

Não consigo falar. Olho em volta da sala. Sou amante da arte grega e passo automaticamente a inventariar os conteúdos da sala.
Objetos adoráveis e de valor inestimável sobre as prateleiras à direita e à esquerda… Eu estava pronta a encontrar o Velho Homem do Mar, mas ninguém me falara sobre os tesouros que ele resgatara das profundezas do oceano.

H.D. sentiu que Freud “estava em casa ali. Ele é parte essencial desses tesouros”.
Freud acumulou sua coleção durante a época das importantes descobertas arqueológicas. Seu herói era Heinrich Schliemann, o aficionado bucaneiro que desenterrou o sítio de Troia em 1871. Em 1900, Arthur Evans começou a escavar o Palácio de Minos, em Knossos, Creta;
22 anos mais tarde, Howard Carter descobriu o túmulo de Tutankamon.
Freud estava ávido para comparar o processo psicanalítico à arqueologia, dizendo a Pankejeff, “o psicanalista, como o arqueólogo, deve descobrir uma camada após a outra da mente do paciente, antes de alcançar os tesouros mais profundos e valiosos”.
A gravura de Max Pollak, feita em 1914, revela o relacionamento do psicanalista com sua coleção. Freud para de escrever por um instante e admira as estátuas reunidas sobre sua mesa. Talvez esteja concluindo O Moisés de Michelangelo, publicado naquele mesmo ano. Freud se concentra na figura central, Cabeça de Osíris (Terceiro Período Intermediário, 1075-716 a.C., ou posterior), principal divindade do Egito, o deus da vida, da morte e da transformação. Assassinado por seu irmão Seth, cortado em pedaços depois dispersados, Osíris ressuscitou graças à intervenção mágica de Ísis, sua esposa e irmã. O mito sugere que as narrativas de recuperação e cura são essenciais à psicanálise. A imagem dramática de Pollak, em luz e sombra, associa o processo criativo de Freud, como pensador e escritor, à contemplação da arte. As estátuas estavam à sombra, simbolizando o passado; Freud, o triunfante escavador da mente moderna, está dramaticamente iluminado. Os deuses testemunham como conselheiros divinos, fornecendo inspiração, tradição cultural, contexto histórico e estímulo estético para as investigações de Freud.
Freud sentia um justificado orgulho de sua coleção. Ele protestou quando seu amigo Stefan Zweig, o prolífico escritor vienense, deixou de mencioná-la num ensaio sobre Freud: “Tenho me dedicado bastante à minha coleção de antiguidades gregas, romanas e egípcias; na verdade, tenho lido mais sobre arqueologia do que sobre psicologia.” Em meio a uma agenda frenética que envolvia aulas na Universidade de Viena, consultas particulares, escrever e traduzir, desenvolver uma rede de conexões internacionais, viagens e as exigências de uma família numerosa, Freud também encontrava tempo para visitar antiquários em Viena, Florença, Salzburg e Roma. De volta para casa com sua nova conquista, Freud a levava para a mesa de jantar, “colocando-a à sua frente, como companhia durante a refeição”. Tampouco suportava se afastar de sua coleção, mesmo nas férias. Concluindo o “livro do sonho” nas montanhas próximas de Berchtesgaden em 1899, Freud disse a um amigo que o acompanhava: “Meus deuses velhos e encardidos… [que] participam no trabalho como peso de papel para meus manuscritos.”
Com o passar do tempo, viajar com seus deuses se tornou uma necessidade.
Durante a década de 1930, a maior parte da coleção seria embalada por sua esposa Martha e por Paula Fichtl, a empregada, e depois transportada para suas residências de verão, perto de Viena.
Dentro de seu gabinete, Freud criava uma galeria particular, mantida afastada do universo mundano: nenhuma de suas obras de arte era permitida em qualquer outro lugar do apartamento que dividia com Martha, seus seis filhos e Minna Bernays, irmã de Martha. O gabinete de Freud era opulento, exótico e idiossincrático; a decoração do resto do apartamento era confortável, burguesa e banal.