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Depois do fracasso da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio, na qual Brasil e Argentina defenderam posições opostas, restou ao País a diplomacia presidencial para recompor os cacos do Mercosul a fim de obter acordos bilaterais futuros. Para isso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi à Argentina na semana passada em grande estilo. Com uma comitiva recorde de 300 empresários brasileiros, ele desembarcou em Buenos Aires pregando a união do Mercosul – chegou a defender a adoção de uma moeda única no futuro. A delegação foi muito bem recebida pela presidente Cristina Kirchner e por cerca de 700 empresários daquele país. O esforço estava sendo bem-sucedido até a chegada de um eterno estragaprazeres. Incorrigível em sua necessidade de chamar para si todos os holofotes e, assim, estragar festas alheias, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, conseguiu novamente ofuscar o brilho de seu colega brasileiro. Chávez chegaria à Argentina na terça-feira 5, para acompanhar Cristina Kirchner numa viagem à Bolívia (leia quadro). Um dia antes, contudo, quando Lula estava no final de um almoço oferecido por ela, Chávez lhe telefonou pedindo que o esperasse para um encontro tripartite. O Itamaraty resistia a agendar uma reunião desse tipo, improvisada em território estrangeiro, temendo que se contrapusesse à agenda da comitiva. Cristina insistiu, e Lula, mesmo contrariado, acabou cedendo, retardando sua partida em uma hora e quarenta minutos.

Os três presidentes conversaram reservadamente por cerca de 40 minutos no Palácio San Martín, sede da chancelaria argentina. Chávez defendeu projetos conjuntos faraônicos, como a retomada do Gasoduto do Sul, uma linha ferroviária unindo Caracas a Buenos Aires, passando pelo Brasil, e uma empresa aérea trinacional na esteira da decisão argentina de renacionalizar a Aerolineas Argentinas. Já Lula insistiu num esforço comum para incentivar a produção de fertilizantes – insumo agrícola derivado do petróleo que tem pressionado os preços da alimentação e a inflação nos três países (no Brasil, os fertilizantes representam 40% do custo dos alimentos). O assunto voltará à pauta em 6 de setembro, mas apenas entre Cristina e Lula, quando eles inaugurarem em Pernambuco uma fábrica de energia eólica montada com capital argentino.

Não é a primeira vez que Chávez rouba a cena de Lula em compromissos no Exterior. No dia 18 de julho, quando o brasileiro se encontrava com o presidente Evo Morales em Riberalta, na Bolívia, ele não apenas apareceu de surpresa como pressionou Lula a aumentar o valor do financiamento para a construção de rodovias na Bolívia. Uma semana depois, em visita oficial a Portugal, o venezuelano queria participar da Comunidade de Países da Língua Portuguesa (CPLP). Desta vez, no entanto, ele foi impedido pelo primeiro- ministro português, José Sócrates, que o dispensou com o argumento acaciano de que a Venezuela não tinha nada o que dizer num encontro dessa natureza.

Apesar de o “penetra” quase estragar a festa, Lula pode dizer que sua visita rendeu dividendos. Cristina elogiou a pujança industrial do Brasil e disse que as empresas daqui são bem-vindas na Argentina (desde 2001 elas investiram US$ 8 milhões no país vizinho). “O Brasil teve nas últimas décadas uma política de Estado de apoiar a indústria. Sua classe produtiva foi convicta em produzir um modelo de desenvolvimento produtivo que fizesse da competitividade o eixo de seu desenvolvimento. A Argentina não teve essa sorte”, disse a presidente. Mas o encontro não ficou só nos discursos. O ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, confirmou que a Argentina deve comprar aviões da Embraer, que também negocia com a Fábrica de Aviões de Córdoba a fabricação de peças do avião de transporte C-170. E a Petrobras, que em futuro próximo precisará de 200 navios, vai encomendar à Argentina barcos de transporte e navios-sonda.

Nem tudo são flores, no entanto, na relação entre argentinos e brasileiros. A questão do trigo, por exemplo. A Argentina suspendeu as exportações desse cereal para atender à demanda interna, mas estabeleceu cotas para o Brasil (2,7 mil toneladas para 2008) que os importadores consideram insuficiente. O Brasil também pede um acordo de preços mínimos para a entrada de vinhos argentinos no País. Os argentinos, por sua vez, reclamam das eternas “assimetrias” como a ajuda do BNDES à nossa indústria. E lembram o superávit comercial do País, mantido há 62 meses consecutivos e que deve atingir US$ 5,8 bilhões em 2008. A retomada do diálogo com Buenos Aires é o principal trunfo de Lula para tentar reerguer o Mecosul. Daqui para a frente, o Brasil vai precisar cada vez mais que o bloco fale uma única língua.

Barrados na Bolívia
Se Hugo Chávez conseguiu estragar a festa de Lula em Buenos Aires, deu-se mal ao tentar, junto a Cristina Kirchner, ajudar o presidente da Bolívia, Evo Morales. Os dois iriam a Tarija, no departamento de mesmo nome, ao sul da Bolívia, para manifestar apoio a Morales, que enfrenta nesse domingo 10 um referendo revogatório em que os eleitores devem decidir se ele continua no poder. Oposicionistas invadiram o aeroporto de Tarija e entraram em confronto com a polícia. A região é reduto da oposição. “Diante do que estava acontecendo, avaliamos a situação e eu disse a Evo Morales que não podía-mos pôr lenha na fogueira”, disse Chávez, que preferiu não arriscar a própria pele. O referendo revogatório é uma consulta popular para confirmar ou rejeitar os mandatos do presidente, vice, e de oito dos nove governadores bolivianos – seis dos quais de oposição a Morales.