O ex-ministro da Fazenda diz que o colapso da Rodada de Doha foi fracasso da mais importante aposta do Itamaraty

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O embaixador Rubens Ricupero cerca-se de cuidados para criticar o governo Lula. Afinal, até hoje ele paga pelo “escândalo da parabólica”, que levou à sua demissão do Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco. Ali, quando se preparava a campanha de Fernando Henrique Cardoso para suceder a Itamar, Ricupero foi flagrado fazendo inconfidências a um jornalista antes de dar uma entrevista na televisão. Assim, Ricupero, atualmente diretor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), de São Paulo, esforça-se em equilibrar críticas e elogios quando analisa a política externa e comercial de Lula. Com a autoridade, porém, de quem foi o secretário-geral da Conferência Nacional das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad), Ricupero avalia que o Brasil pagará um preço grande pelo insucesso da Rodada de Doha, de negociação de regras para o comércio internacional. Para o ex-embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Doha era o último vértice de um tripé em que o Brasil apostou. As duas outras pontas – o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e o estabelecimento do Mercosul como único bloco de países no continente – já tinham malogrado. O fracasso de Doha representa a derrota da última grande aposta brasileira no campo internacional. O Brasil, insiste Ricupero, não errou na tese. Apenas não teve sorte. “O príncipe precisa de virtude e de fortuna (sorte)”, diz Ricupero, citando Maquiavel. “Na política externa, faltou a fortuna”, completa ele, ressalvando que sua avaliação não é crítica, mas, sim, objetiva.

ISTOÉ – O Brasil apostou todas as suas fichas no sucesso da Rodada de Doha, mas a cúpula fracassou. O que se projeta agora para o País?
RUBENS RICUPERO

A aposta brasileira na rodada e na Organização Mundial de Comércio era uma imposição da nossa realidade. Um país que tem a sua competitividade concentrada na agricultura não tem outro caminho. Os problemas maiores da agricultura derivam sobretudo dos subsídios e das barreiras que os países desenvolvidos utilizam. Os europeus não vão abrir mão dos seus subsídios ou das suas barreiras se os americanos não fizerem o mesmo. Portanto, eles não vão negociar nada disso com o Brasil porque o que está em jogo para eles não é o Brasil, são os Estados Unidos. Então, isso só se resolve no âmbito multilateral. Infelizmente, para o Brasil, não há alternativa senão as negociações na Organização Mundial de Comércio.

ISTOÉ – Então, não temos saída?
RUBENS RICUPERO

Nós temos que esperar que ocorra agora o que aconteceu na Rodada Uruguai (a série de negociações comerciais anterior à Rodada de Doha). Lá, a reunião que deveria ser a final, em Bruxelas, em dezembro de 1990, terminou com um fracasso total. Dois anos depois, a rodada se reativou e terminou num nível muito bom, que inclusive levou à criação da própria Organização Mundial de Comércio.

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ISTOÉ – Foi errada a tática do Brasil de dar as costas aos seus parceiros tradicionais e ficar numa posição autônoma?
RUBENS RICUPERO

O G-20 foi uma aliança para dizer não e não para dizer sim. Ela foi uma aliança construída em setembro de 2003 para fazer oposição ao que os americanos e os europeus queriam impor em Cancún, que era uma solução muito desequilibrada e insatisfatória na agricultura. Ali, o Brasil se uniu a um grupo muito poderoso, mas também que já se sabia muito disparatado. O Brasil tinha um interesse genuíno na liberalização do comércio agrícola, enquanto Índia e China sempre foram contrários. A aliança foi útil enquanto se tratava de resistir às imposições americanas e européias. Mas chegou um momento em que o Brasil fez o julgamento de que, agora, o que americanos e europeus estavam oferecendo era mais satisfatório.

ISTOÉ – O G-20 acabou?
RUBENS RICUPERO

Todos os países envolvidos vão dizer que o G-20 permanece. Se o problema for utilizar de novo essa tática de resistir às imposições de americanos e europeus, o G-20 serve. Mas, se for para negociar, não dá. Não é uma aliança para ganhar o jogo, é uma aliança para empatar o jogo.

Ganhar o jogo para nós significa aumentar o nosso acesso a mercados agrícolas não só da Europa ou do Japão, mas da China e da Índia.

ISTOÉ – Se o G-20 não é para ganhar o jogo, qual deve ser a estratégia do Brasil no momento em que se retomarem as negociações multilaterais?
RUBENS RICUPERO

Só interessa ao Brasil que o G- 20 vá até o final da negociação se isso não significar o fechamento do acesso brasileiro aos mercados agrícolas da China e da Índia. O futuro das commodities no mundo não está nos países ricos, está na Índia, na China e nos países asiáticos. Ali é que há mercado. E a razão é fácil de entender: a Europa e o Japão estão com uma população declinante. Como você não pode se alimentar além de um determinado limite, não há ali grande possibilidade de crescimento.

ISTOÉ – E como conquistar esses mercados?
RUBENS RICUPERO

O ideal seria o Brasil fazer ao máximo acordos com o Mercosul. Mas eu não sei se o presidente Lula vai querer enfrentar os problemas que decorrem disso. A complicação do Mercosul não é só a instabilidade da Argentina ou os problemas que viriam da adesão da Venezuela. O problema maior é que o Mercosul não tem um mecanismo de falar numa só voz como a Europa tem. A União Européia negocia comércio por sua comissão em Bruxelas. O Mercosul não tem uma estrutura assim. Não tem um executivo para negociar como bloco único. Negociar em bloco no Mercosul implicaria criação de um executivo único, e não sei nem se o Brasil deseja isso mesmo, porque também significaria abrir mão da sua própria autonomia.

ISTOÉ – E qual o futuro, agora? Qual o caminho a seguir enquanto fica no ar a Rodada de Doha?
RUBENS RICUPERO

A Rodada de Doha, no curto prazo, dificilmente ressuscitará. Haverá eleições nos Estados Unidos e também na Índia. Enquanto isso não acontecer, esses países não vão se mexer. Mas, num prazo de um ano, não acho impossível que as negociações sejam retomadas. E a verdade é que, em negociações bilaterais, o Brasil só vai conseguir resultados limitados, num produto ou noutro. Nós nem podemos negociar sozinhos, porque fazemos parte de uma união aduaneira, que é o Mercosul. O Brasil só pode fazer um acordo se todos os países do Mercosul fizerem. E nós temos parceiros complicados. É importante, para nós, fechar um acordo em Doha. Estrategicamente, para o País é ruim esse fracasso.


ISTOÉ – Por quê?
RUBENS RICUPERO

A política externa do governo Lula teve três focos: o ingresso com lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, a idéia de usar o Mercosul como semente de uma união comercial e econômica da América do Sul e um acordo agrícola na Rodada de Doha. Eu devo dizer que estou de acordo com os três, mas a verdade é que esse tripé malogrou. A ampliação do Conselho de Segurança é uma discussão que saiu da agenda. O Mercosul como uma aliança única na América do Sul não é algo mais viável, depois que Chile, Peru e Colômbia assinaram com os Estados Unidos a entrada na Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Realisticamente, só o que sobrava era a conclusão da Rodada de Doha.

ISTOÉ – Então, fracassou a política externa do governo Lula?
RUBENS RICUPERO

Política externa é algo que depende muito daquilo que diz Maquiavel em O príncipe: “O príncipe precisa de virtude e de fortuna.” Fortuna aí como sinônimo de sorte. Na política externa, faltou a fortuna. Em política externa, mesmo que se faça tudo certo, o sucesso também depende dos outros. Entrar para o Conselho de Segurança não depende só de nós. Aqui, no caso do Mercosul, as circunstâncias mudaram. A tônica hoje no continente não é mais a convergência, é a divergência

ISTOÉ – Mas será que o Brasil percebeu isso? Não houve alguns passos equivocados? Por exemplo, ter dado apoio às Farc, ter amparado Hugo Chávez?
RUBENS RICUPERO

Acho que o presidente Lula, conscientemente ou não, é um discípulo da forma de governar de Getúlio Vargas. Getúlio sempre governou equilibrando posições opostas no seu gabinete. Quando ele caiu, em 1945, estava no centro da criação de dois partidos, o PSD e o PTB, um rural e conservador; o outro urbano e progressista. Ele sempre se identificou com o PTB, mas governou com os dois. E sempre teve no governo pessoas que representavam posições opostas, e ele ficava na condição de árbitro. O presidente Lula faz exatamente o mesmo. Em política econômica, ele tem o Henrique Meirelles no Banco Central representando a faceta de direita, conservadora, que combate a inflação, e o Guido Mantega, no Ministério da Fazenda, com uma equipe crítica, alternativa. Na Justiça, tem o Tarso Genro com essas declarações sobre punição para tortura, e o Nelson Jobim do outro lado. Na Agricultura, tem o ministério do agronegócio e o da reforma agrária.

ISTOÉ – ISTOÉ ? E no Itamaraty?
RUBENS RICUPERO

Há ali o quadro de diplomatas e o grupo fora do quadro, liderado por Marco Aurélio Garcia. Este é o homem do partido, que tem simpatia pelas Farc. Antigamente, se dizia que o Partido Revolucionário Institucional (PRI, o partido então no poder no México) tinha uma política econômica conservadora, mas uma política externa progressista, de crítica aos Estados Unidos, como forma de se manter apegado às origens remotas da Revolução Mexicana. O mesmo ocorre com o PT. Tem que dar apoio simbólico ao padre Camilo, que vem aqui representar as Farc. Tem que acenar ao Hugo Chávez. Fazer um gesto em relação ao Fidel Castro. Mas, na hora de decidir, o governo é mais conservador.

ISTOÉ – O ministro Celso Amorim foi alvo de muitas críticas ao final da reunião de Genebra. O sr. acha que ele se desgastou como negociador?
RUBENS RICUPERO

Não acredito. O ministro teve momentos pouco felizes, como quando citou a frase de Goebbels (Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazista). Mas isso se justifica no nervosismo da negociação. Ele é um homem extremamente inteligente, um diplomata audacioso. Há alguns anos, quando se falava de ampliação do Conselho de Segurança, sempre se citava também México e Argentina como possibilidades. Mesmo que essa seja uma discussão fora da pauta atual, hoje só se fala no Brasil como candidato a uma vaga. Isso é um mérito da política externa brasileira. Onde o Brasil poderia ter feito mais é na questão ambiental, na discussão sobre o aquecimento global. O Brasil detém a maior floresta tropical do mundo, tem a maior biodiversidade, tem uma matriz energética limpa e 30 anos de experiência na tecnologia de biocombustível. Faltou inteligência para o Brasil, no momento em que malograram os três focos em que apostou na política externa, ter investido nessa bandeira.

ISTOÉ – O governo vem adotando a alta das taxas de juros como principal instrumento de combate à inflação. Esse é o caminho correto?
RUBENS RICUPERO

A ameaça da inflação é real. E grande parte dessa ameaça vem do Exterior, de uma conjuntura mundial difícil. Então, aumentar a taxa de juros não vai resolver muito. Internamente, há medidas que, a meu ver, são contraditórias com o combate à inflação. Não vejo, por exemplo, como se pode conciliar combate à inflação com uma expansão desmesurada da produção de automóveis somada ao amparo de instrumentos de crédito. A promoção de 20 milhões de pessoas das classes D e E para a classe C é bem-vinda. Mas isso se justifica no consumo de alimentos, de gêneros de primeira necessidade. Mas automóvel não é bem de primeira necessidade. Incentivar isso é algo que eu só posso rotular de populismo.



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