i57744.jpgVocê é cristão?, indagou um paramédico ao diplomata Sérgio Vieira de Mello, quando ele estava preso a escombros na sede da ONU, em Bagdá, após o atentado em 2003.
– Não.
– Seria bom rezarmos juntos.
– Eu vou morrer, não é? Por favor, me tire daqui.
Essas foram as últimas palavras do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello conversando com um dos paramédicos que ajudavam na remoção das vítimas da explosão do prédio da Organização das Nações Unidas, na tarde do dia 19 de agosto de 2003, há cinco anos. O atentado ocorrera às 16h28 e Vieira de Mello resistiu até pouco depois das sete horas da noite, quando entrou em estado de choque e parou de responder aos estímulos da equipe de resgate. A precisa reconstituição dos últimos momentos de vida de um dos mais destacados homens públicos brasileiros, assim como a sua bem-sucedida trajetória à frente do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), estão relatadas na recém-lançada biografia O homem que queria salvar o mundo (Companhia das Letras, 670 págs., R$ 59), escrita pela jornalista Samantha Power, ex-assessora do candidato à Presidência Barack Obama e ganhadora de um Prêmio Pulitzer.
Samantha expõe com detalhes a precariedade dos equipamentos disponíveis para o serviço de salvamento ao afirmar que, na ausência de roldanas e fios de extensão, "as forças armadas mais poderosas da história da humanidade" dependeram até de uma bolsa feminina presa a um cordão de cortina para retirar escombros que estavam sobre as vítimas. Vieira de Mello, 55 anos, numa triste e trágica ironia da vida, acabou morto no conflito para o qual fora destacado para negociar a paz. Nascido no Rio de Janeiro e filho de diplomata, ele falava seis idiomas e fora estudar na Europa durante a ditadura no Brasil – começa aí uma trajetória brilhante que chegaria ao ápice com o cargo na ONU.

Vieira de Mello cursou filosofia na Sorbonne e se aprofundou nos estudos do marxismo, chegando à conclusão de que tal modelo de pensamento era o único que poderia ter alguma aplicação prática na vida em sociedade. Em 1968 se engajou no movimento estudantil na França, foi espancado pela polícia e acabou hospitalizado com ferimento nos olhos. No ano seguinte foi admitido no Acnur, dando início a uma carreira que se prolongou por 34 anos. A biografia de Samantha enobrece o trabalho de Vieira de Mello, mas não é laudatória. Em uma passagem ela questiona a convicção inabalável do diplomata na capacidade da ONU em solucionar conflitos diante de árbitros tão irredutíveis como os EUA, que mais de uma vez passaram por cima de suas resoluções.

i57745.jpgPor influência de sua formação marxista, ele tinha uma profunda desconfiança do poder do Estado e da força militar e acreditava que o único caminho para a criação de uma estabilidade mundial e duradoura era pressionar os países para que eles seguissem regras internacionais. E foi essa convicção que o impulsionou a assumir uma missão impossível atrás da outra – liderou a pacificação e reorganização de países nas principais zonas de conflito do mundo: Sudão, Líbano, Camboja, Bósnia, Congo, Kosovo, Timor Leste e Iraque. Nesse período nasceram os seus dois filhos, Laurent e Adrien, que hoje vivem com a mãe, Annie, na Suíça. Inteligente, carismático e profundo conhecedor de seu trabalho, ele declarou numa entrevista a Samantha que sentia saudades de Sarajevo, onde morou por cinco meses, na guerra da Bósnia: "Preferia a vida sob um cerco a essas incessantes reuniões. Nasci para o trabalho de campo." A sua vocação faria dele o homem mais indicado para representar a ONU na reconstrução do Iraque após a deposição de Saddam Hussein. Vieira de Mello foi nomeado justamente porque era, na visão de Kofi Annan, o único capaz de negociar concessões com o presidente George W. Bush, que já declarara publicamente sua admiração pelo trabalho do diplomata. Não houve tempo – ele morreu dois meses após chegar a Bagdá. Na definição adotada por Samantha, Vieira de Mello foi uma espécie de "James Bond" desse perigoso mundo de guerras civis, extremismo religioso, genocídio e terrorismo. E passou três décadas tentando salvar ou, ao menos, melhorar vidas.

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