27/08/2008 - 10:00
No Natal de 1976, o jovem advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, à época com 28 anos, ganhou projeção nacional ao denunciar a tortura sofrida nos porões da ditadura pelo militante comunista Aldo Arantes, capturado e levado ao DOI-Codi paulista numa ação que entrou para a história como a "Chacina da Lapa". Desde então, a trajetória do advogado esteve intimamente ligada à questão dos direitos humanos. Greenhalgh, por exemplo, hoje lidera o processo judicial pela abertura dos arquivos do Araguaia. Em entrevista à ISTOÉ, ele diz que o ministro Tarso Genro fez bem ao reabrir o debate sobre a punição aos torturadores, mas diz que a situação brasileira é diferente da de países como a Argentina. "Aqui, a anistia foi conquistada dentro da ditadura; lá, veio com a queda do regime", diz ele. "Além disso, no Brasil a reparação financeira veio antes da discussão sobre as penas." Greenhalgh defende um modelo semelhante ao que a África do Sul implantou após o apartheid. Nesta entrevista à ISTOÉ, ele também se defende das acusações que sofreu na Operação Satiagraha, da Polícia Federal.
Eu fui presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia e, em 1979, nós fizemos um projeto de lei que perdeu na sessão do Congresso Nacional que aprovou a Lei de Anistia. Nosso projeto era de anistia ampla, geral e irrestrita, que não contemplava nenhum perdão aos torturadores. O projeto que acabou sendo aprovado foi aquele feito pelo presidente João Figueiredo, de anistia restrita, que tinha a idéia de que se consideravam conexos aos crimes políticos anistiados aqueles cometidos pelos funcionários públicos, os agentes do Estado.
Não. Pela Constituição Federal de 1988, o crime de tortura é imprescritível, inafiançável e jamais sujeito ao perdão. É um crime permanente, de lesa-humanidade. Além disso, do ponto de vista jurídico, aquela tese do projeto do Figueiredo é inconsistente, porque jamais se pode considerar a tortura como um crime político.
Do ponto de vista jurídico, sim. Mas a Lei de Anistia é uma lei jurídica, mas também política. E do ponto de vista político, nós ainda não temos condições suficientes na opinião pública para estabelecer a punição a esses crimes.
Primeiro, já decorreram quase 30 anos da Lei de Anistia. Segundo, a sociedade brasileira não coloca essa questão como um tema prioritário. Portanto, é necessário que se estabeleça um movimento nacional para que esse assunto seja antes debatido e, depois, incorporado à ordem política. Aliás, como se fez na Argentina.
Sim. Lá, as mães da Praça de Maio, os familiares e as avós foram para cima dos torturadores. E muitos se recusaram a usar dos benefícios financeiros e indenizatórios da anistia para manter acesa a chama da necessidade da Justiça. Eu vejo uma diferença entre os movimentos das vítimas da ditadura militar do Chile e da Argentina em relação a nós. É por isso que lá há torturadores condenados e presos. Além disso, o general Pinochet morreu em prisão domiciliar.
Do ponto de vista quantitativo, medindo pelos 453 mortos e 144 desaparecidos, ela foi mais branda. Mas, do ponto de vista qualitativo, não. A repressão feita no Brasil foi aquela que se espraiou para a Argentina e para o Chile.
Mais ou menos isso. Logo depois da anistia, as pessoas que lutaram por ela passaram a ter um novo horizonte político. Nós, por exemplo, começamos a discutir o PT. Houve uma reinserção quase plena. Primeiro, foram legalizados os partidos políticos, depois veio a Constituinte e o processo culminou com as eleições presidenciais de 1989. Isso foi um processo de massas, que nasceu em plena ditadura. Fomos ocupando as ruas, as mentes e os corações. E os que conquistaram a anistia se engajaram em outras lutas. Depois, essa questão ficou restrita aos interessados mais diretos. E o Estado brasileiro, revanchista que é, retardou ao máximo as reparações. Eu tenho casos de 1982.
Eu estou beirando os mil casos.
O da chamada Chacina da Lapa, que aconteceu em 16 de dezembro de 1976. Havia uma reunião do comitê central do Partido Comunista do Brasil e os militares invadiram a casa, mataram algumas pessoas, como o Pedro Pomar, e prenderam outras como o Aldo Arantes, o Vladimir Pomar e o Haroldo Lima, atual presidente da Agência Nacional do Petróleo.
A Lei de Segurança Nacional estabelecia dez dias de incomunicabilidade. A chacina aconteceu num 16 de dezembro e o décimo dia seria o Natal. Eu então obtive uma autorização judicial para quebra da incomunicabilidade do Aldo, do Vladimir e do Haroldo. Quando cheguei ao Dops, o delegado Sérgio Paranhos Fleury rasgou a ordem judicial. Eu a recolhi no lixo e disse que, então, levaria ao juiz. O Fleury se assustou e me permitiu falar com os presos. Quando falei com o Aldo, tomei consciência da tortura. Havia marcas de cigarro no corpo, choques nos dedos, no saco escrotal e marcas do pau-de-arara. Ele me disse que não agüentaria uma nova sessão de tortura. Quando veio o Vladimir e me disse que estava preocupado com o pai, eu mesmo dei a ele a notícia do assassinato, no que foi um dos momentos mais tensos da minha vida. Ao sair do Dops, o Fleury me ameaçou.
Que, se cruzasse comigo, seria o meu fim. Mas disse também que respeitava pessoas de coragem. Na saída, ele estendeu a mão, mas eu não o cumprimentei. Depois, saí do Dops numa tremedeira. Demorei dez minutos para conseguir atravessar a rua. Depois, o Jornal da Tarde noticiou a tortura do Aldo Arantes e esse caso me deu uma certa notoriedade.
Eu aprovo a posição dele, mas defendo que antes ocorra um debate nacional. O Tarso quer isso, mas o Lula já disse que é contra. A própria ministra Dilma Rousseff, que foi uma das pessoas mais torturadas do País, é contra. Além disso, há casos, como o do processo movido pela família Teles contra o coronel Carlos Alberto Ustra, que vêm sendo acolhidos pelo Judiciário.
Que o governo institua uma Comissão da Memória e da Verdade, assim como o Nelson Mandela fez na África do Sul, depois do apartheid. Lá, a comissão foi presidida pelo bispo Desmond Tutu e as pessoas que prestavam depoimento, assumindo compromisso com a verdade, ficavam livres das penas. Assim, seria possível reescrever a história da ditadura e estabelecer um fato histórico incontroverso.
É a ação que está mais perto de apresentar resultados. Já transitou em julgado, depois de um longo processo. Ingressamos com o processo em 1982, quando o governo brasileiro nem sequer reconhecia a existência da guerrilha do Araguaia. Consolidamos a prova, mas a União sempre recorreu, inclusive no governo do PT, alegando razões de Estado.
Eu não me assusto com os valores. São quantias que deveriam ter sido pagas há 30 anos. Se tivessem quitado lá atrás, as indenizações teriam sido muito reduzidas. Como o Estado brasileiro negou o direito de anistia, muitos se espantam.
Sim. Tem muita gente que se montou na anistia. Não foi perseguido político e entrou com pedido de indenização. É bom lembrar que o AI-5 punia não só a subversão como também a corrupção. Mas hoje, honra seja feita, na atual comissão do Ministério da Justiça, há um rigor muito grande.
Isso é uma grande calúnia. Não há nenhum anistiado político neste país que tenha condição moral de dizer que deu um centavo a mim. Nunca cobrei dos meus clientes em processos ligados a mortos, desaparecidos e anistiados. É um trabalho voluntário. No Ministério da Justiça, eu tenho uns 200 processos, num universo de 50 mil.
Eu sou um militante. Fui derrotado na última eleição e voltei a advogar.
Eu advogo para uma base social com determinadas características. O padre Júlio Lancelotti, na questão dos direitos humanos, o Cesare Battisti, que é um refugiado político, e também para as famílias do Araguaia. No caso do Daniel Dantas, que é uma pessoa controversa, muitas vezes o que acontece com ele respinga em mim. Eu informei à Ordem dos Advogados sobre os procedimentos que tomei como advogado.
Não, nenhum receio quanto ao que possa ocorrer a mim. O que me assusta é que viramos uma grande grampolândia. As pessoas vêm tendo a intimidade devassada de forma abusiva e isso ocorre, na maioria das vezes, sem autorização judicial. Muitos desses grampos clandestinos acabam sendo usados como instrumentos de chantagem. Estamos à beira de um Estado policialesco, sem nenhum tipo de controle.
Não sei.
Antes de ser governo, quando ainda éramos oposição, sempre que eu via algo com importância política, eu me dirigia às autoridades. Um exemplo: na investigação da morte do Celso Daniel, certo delegado resolveu invadir o apartamento dele e, para tanto, informou diversos canais de televisão, que montaram links em Santo André. Naquela ocasião, quando eu soube, liguei imediatamente para o então ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira. Ele pediu meu telefone e mandou o chefe da Polícia Federal me procurar. Quinze minutos depois, o dr. Agílio Monteiro ligou para a minha casa, dizendo que iria encerrar o assunto e recolher o delegado.
No atual governo, em determinado momento, soube que um cliente meu, Humberto Braz, estava sendo seguido ostensivamente no Rio de Janeiro. Eu não liguei para o Gilberto Carvalho imediatamente. Só o procurei depois que o Humberto acionou a polícia do Rio e os homens que o seguiam se identificaram como agentes a serviço da Presidência da República. O que me choca nesse episódio é que eu tenha que dar explicações, e não os chefes da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, que mobilizaram 40 homens numa operação clandestina.