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O DITADOR
Adolf Hitler em seu escritório em Berlim, na década de 1930

Do arquivo das cartas recebidas pelo tirano nazista Adolf Hitler entre os anos de 1923 (início de sua carreira política) e 1945 (quando se suicida) saem súplicas, críticas e conselhos, mas sobretudo expressões de veneração e esperança no futuro da Alemanha “graças ao abençoado führer”. Jovens declaram lealdade eterna ao seu partido, senhoras aplaudem o caráter antissemita do ditador, pais de família batizam seus recém-nascidos com o nome “Adolf”, e escrevem pedindo para que Hitler seja padrinho, e crianças mandam desenhos ao seu “querido führer”. É desconcertante ler essas missivas carregadas de emoção e expectativa alçando Adolf Hitler à condição de salvador da pátria, quando o mundo já sabia da barbaridade histórica que estava em curso naquele país. O historiador alemão Henrik Eberle, autor do best-seller “O Livro de Hitler” (traduzido para 30 idiomas), é um incansável pesquisador do movimento social que deu origem ao fenômeno nazista. E ele é implacável com os seus conterrâneos. Afirma que o “maquinário da morte” arquitetado por Hitler jamais teria existido se não fosse “a fanatização da população, que mobilizou forças destrutivas de dimensões gigantescas”.

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Eberle teve acesso a esse material epistolar que se encontrava em Moscou e o reproduz agora com ineditismo em seu novo livro, “Cartas para Hitler” (Planeta), que analisa a trajetória do ditador a partir desses escritos. São mais de 30 mil cartas, sendo os anos de 1934, 1938 e 1939 prolíficos – mesmo após a invasão da Polônia, festejada em bilhetes e felicitações de fim de ano. É o caso do gerente de uma fábrica de meias que escreve prometendo “lealdade inquebrantável e trabalho incansável em sua obra”. E dos versos enviados em 1941, durante a guerra, por autor anônimo: “Se todo povo tivesse um führer assim, como a Providência nos enviou, como esta Terra seria agradável, como todos seriam felizes!” Havia ainda astrólogos oferecendo seus serviços ao fuhrer, solicitação que recebeu a seguinte resposta: “O senhor se engana se acredita que Hitler se aconselharia com um astrólogo. Ele ainda não pode realizar um julgamento conclusivo da astrologia e não pretende propagá-la por meio de seu movimento ou de planfetos.”

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Quando se aproximava o fim do regime nazista, cartas ainda chegavam à chancelaria do Reich, mas em menor quantidade. A maioria delas trazia votos de alegria e solidariedade e orações pelo povo alemão – mas o autor do livro destaca uma boa centena de correspondências que ofereciam ao líder nazista projetos de artefatos como armas, bombas e foguetes, numa tentativa desesperada de ajudar o Exército alemão a vencer a guerra. Dessas propostas, algumas eram fantasiosas, outras chegaram a ser concretizadas, como o motor a metano que tirava sua energia de uma célula combustível embutida no próprio tanque e uma arma que desenvolvia uma órbita própria e melhorava em até oito vezes a pontaria – o esboço desse último invento foi enviado pelo suíço Rudolf Rohrbock, dono de uma loja
de materiais de aço e ferro, e recebido pela chancelaria em março de 1945, um mês antes da morte de Hitler. É o último registro epistolar que se tem dos admiradores do bunker nazista.

Leia trecho do prefácio de “Cartas para Hitler”, de Henrik Eberle

“Mein Führer!”,¹ “Excelentíssimo senhor chanceler do Reich!”, “Honrado senhor Hitler!” ou “Amado Führer!” — havia várias formas possíveis para iniciar uma carta a Hitler. A saudação “Querido Adolf!” só é encontrada nas cartas que Angela Raubal, irmã de Hitler, escreveu a este. Formalmente corretos seriam, a partir de 1934, os tratamentos “Mein Führer” — para camaradas do partido — assim como “excelentíssimo Führer e chanceler do Reich”. Porém, as cartas que chegavam à chancelaria privada de Hitler eram quase sempre tudo menos documentos formais. Tratava-se de congratulações e petições, sugestões bem-intencionadas e protestos furiosos. Escreviam a Hitler professores e alunos, freiras e padres, desempregados e conselheiros comerciais, almirantes e homens simples da SA.²
Os remetentes queriam principalmente expressar seus sentimentos. Havia homens, mulheres e crianças que diziam realmente amar Hitler. Alguns o veneravam até mesmo como o Messias ressuscitado, outros viam nele a personificação do Mal.
Pessoas menos emocionais julgavam Hitler de acordo com seu desempenho político. Elas o apoiaram, mas se afastaram quando a sorte na guerra o abandonou.
A quantidade de cartas recebidas por Hitler mostra o desenvolvimento de sua curva de popularidade. Em 1925, as cartas cabiam em uma única pasta de arquivo. De janeiro a abril de 1933, foram mais de 3 mil cartas, como comprovam os carimbos de entrada da chancelaria de Hitler. No final do ano, foram aproximadamente 5 mil. Em 1934, chegaram pelo menos 12 mil cartas, em 1941, ainda foram mais de 10 mil. Em seu aniversário, em abril de 1945, menos de cem pessoas parabenizaram Hitler.
Os conteúdos das cartas também se alteravam. Em 1932, várias pessoas confiavam apenas nele para solucionar seus problemas e desejavam-no como ditador. A democracia, era o que elas acreditavam, teria se “arruinado”. As pessoas associaram à sua pessoa os primeiros sucessos na luta contra o desemprego e agradeceram-lhe por isso. Mas em 1933 e 1934 já houve cartas críticas. Judeus reclamavam de sua exclusão da sociedade, pastores protestavam contra interferências na administração autônoma das igrejas, e até mesmo o extremista de direita, herói de guerra, Erich Ludendorff queixou-se da limitação da liberdade intelectual.
Porém, quando a ditadura de Hitler se consolidou, as críticas também retrocederam. Entre 1935 e 1938, a correspondência da população apresentou-se como uma corrente homogênea de veneração. Durante a Segunda Guerra Mundial, o caráter das cartas voltou a se transformar.
Um professor ginasial, por exemplo, exigiu então de Hitler o extermínio dos judeus. Também não foram poucos os que quiseram se aproveitar da miséria dos outros, como o príncipe Friedrich Christian de Schaumburg-Lippe, que perguntou a Hitler se não poderia receber também algo dos bens pilhados de poloneses e judeus.
Depois do revés em Stalingrado, porém, não houve mais cartas como essas. Agora só se exigia de Hitler que ele evitasse o pior com novas “armas milagrosas”.

O tom de algumas cartas nos leva a questionar se não foram escritas predominantemente por “loucos”. Nos documentos do conselheiro ministerial Konrad Ehrich, responsável pela correspondência da população na chancelaria do Reich, podem ser encontradas apenas 13 observações, de 1945, que indicam que os remetentes haviam sido classificados como doentes mentais. Considerando-se as milhares de cartas enviadas a Hitler, esse número é baixo. A forma como o conselheiro ministerial lidava com essas mensagens é característica da gélida frieza da burocracia nazista.
No dia 14 de setembro, ele se dirige, inicialmente cauteloso, ao administrador do conselho de Calau informando-o sobre a carta de “uma Martha” de Senftenberg.

Já há certo tempo, uma “Martha” envia cartas ao Führer cujos conteúdos nos levam a concluir que a remetente não é muito equilibrada mentalmente.
Eu lhe envio a última carta que aqui chegou, de 8 de setembro de 1942, e peço que o senhor convença a escritora, caso possa ser localizada, a abandonar seus escritos sem sentido no futuro.

Por ordem
Ehrich

Depois que a mulher, que se autodesignava “Martha Hitler”, escreveu mais duas cartas a Adolf Hitler em novembro de 1942, o conselheiro ministerial notificou o chefe do serviço de segurança da SS. Presume-se que o serviço de segurança tenha mandado internar a mulher em um sanatório. Não foi possível descobrirmos se ela, como mais de centenas de milhares de outros doentes mentais, também foi morta.
A chancelaria privada de Hitler lidava com as cartas de doentes mentais de forma mais tranquila. Aqui foi criado um “arquivo A” para esse tipo de correspondência no qual eram incluídas também as “escritoras frequentes”. Essas mulheres não recebiam resposta. Somente quando as remetentes anunciavam que pretendiam ir a Berlim para finalmente tomar o amado Führer nos braços, o chefe da chancelaria privada, Albert Bormann, avisava a polícia local. Não sem razão, as pessoas consideravam um possível stalking por seguidores de Hitler eufóricos um risco à segurança.
Cartas totalmente desinibidas que expressavam de forma bastante abstrata “amor” ou admiração ilimitada eram desagradáveis a Hitler, mas ele conferia à correspondência popular em si um papel importante como “barômetro da atmosfera”. Até o início da guerra, ele considerava de grande valor ser informado sobre as preocupações e necessidades da população. O chefe de cada uma das diferentes chancelarias de Hitler, por isso, tinham sempre acesso direto ao Führer; um privilégio pelo qual alguns ministros e até o presidente do Banco do Reich os invejavam. Naturalmente, Hitler não lia pessoalmente as cartas, com algumas exceções. Rudolf Heß, que cuidou da correspondência da população até 1931, e depois Albert Bormann, preparavam excertos ou apresentavam a Hitler o que haviam encontrado nas cartas como “opinião do povo”.
Assim, a questão sempre recorrente sobre a religião com a qual Hitler simpatizava era tomada a sério. O secretário privado Heß normalmente indicava, “em nome do senhor Hitler”, as suas observações no livro Minha luta. Às vezes ele também respondia de forma críptica com uma citação da Bíblia. A um participante do golpe de 1923 que, naquele meio-tempo, se tornara profundamente religioso, ele escreveu: “O senhor Hitler não se manifesta a respeito de tais perguntas puramente pessoais como a que o senhor colocou. Se o senhor, porém, colocar em prática a frase: ‘Vós os reconhecereis pelos seus atos’, então não será necessária nenhuma resposta neste caso”.
Muitas vezes, a chancelaria privada teve de ressaltar que o NSDAP³ não era um movimento evangélico, mas sim supraconfessional e político. Principalmente devido aos sentimentos religiosos da população, Hitler deixou-se fotografar durante as campanhas eleitorais em cultos religiosos.

Do ponto de vista atual, parecem ainda mais interessantes os próprios textos e seu formato. Pois nas pastas de arquivos com a correspondência do povo podem ser encontradas cartas de amor e juras de lealdade, assim como testemunhos de objeções e contraposições. Mas apenas o fato de milhares dessas cartas terem sido escritas mostra uma confiança no governo como nunca existira, nem antes, nem depois. Em suas cartas a Hitler, o qual aceitavam como Führer, as pessoas abriam seus corações.
Contavam o que as emocionava. A simples visão do soberano radiante já podia despertar emoções, mas, entre as testemunhas de Jeová, elas podiam ser despertadas pela perseguição de um irmão de fé.
Encontram-se nessas cartas adoração e ódio, mas não raramente também súplicas humilhantes. Pois, muitas vezes, subjetivamente mais importantes que as decisões políticas eram as preocupações privadas com que companheiros de partido ou não importunavam o “seu Führer e chanceler do Reich”. Em retrospectiva, são emocionantes as cartas de pensionistas desesperados que não sabiam como conseguiriam sobreviver com o deplorável benefício social. Mas o destino de pequenos empresários que foram à bancarrota durante a crise econômica mundial também nos toca.
Algumas cartas relatam sobre o amor por um homem ou uma mulher que apenas devido a dificuldades financeiras ou por regulamentos legais não podia ser consumado. Às vezes, as pessoas que faziam pedidos ultrapassavam uma linha de separação invisível, o que a chancelaria privada, a fim de induzi-las a produzir cartas padrão, respondia com o seguinte texto:

Prezado Senhor!/ Prezada Senhora!

Confirmo o recebimento de sua carta endereçada ao Führer e informo que o mesmo, por princípio, não se imiscui em questões privadas.

Saudações alemãs!
Albert Bormann

De maneira geral, as cartas podem ser divididas em duas categorias. De um lado estão as cartas da população sem uma intenção determinada, apenas de agradecimento, congratulações e homenagem. Pessoas que haviam conseguido um emprego outra vez, por exemplo, agradeciam por ter de novo comida suficiente. Outros adoravam Hitler com euforia devido a seus sucessos políticos, como a anexação da Áustria ao Reich alemão. Somente quando um remetente atingira uma certa posição, essas cartas podem ser classificadas como expressão de lealdade que era pano de fundo para alguma intenção.
Um exemplo disso é a carta de congratulação pelo aniversário do almirante Erich Raeder de 1933. Raeder era desde 1928 chefe da Marineleitung,⁴ portanto fora empregado pelos políticos democraticamente eleitos da República de Weimar. De seu ponto de vista, então, parecia necessário parabenizar Hitler e agradecer-lhe, entre outras coisas, pelo fato de a odiada combinação preto-vermelho-ouro ter sido banida da bandeira, e a antiga combinação preto-branco-vermelho ter voltado a ser utilizada.
A segunda categoria pode ser descrita como cartas de demandas e pedidos. “Pessoas absolutamente normais” esperavam de Hitler uma melhora de sua situação social. A esse grupo pertenciam aqueles que realmente vegetavam abaixo do limite da pobreza. Mas entre eles incluíam-se também os que se consideravam rebaixados em sua classe social ou que tinham a impressão de ser pressionados pelos comerciantes alemães.
O terror estatal cada vez maior também teve como consequência um aumento das petições de clemência. Porém, todos os pedidos que chegavam às chancelarias de Hitler para que libertassem o marido, filho, cunhado ou tio preso, iam diretamente para os arquivos sem respostas ou eram encaminhados para o Reichsführer da SS⁵ Heinrich Himmler. As diversas chancelarias, naquele momento, chancelaria do Reich (dirigida por Hans Heinrich Lammers), chancelaria privada (Albert Bormann) e chancelaria do Partido (Martin Bormann) procediam igualmente nesses casos, de forma que se pode presumir a existência de um acordo interno. Em todos esses casos, portanto, a instituição responsável pela repreensão era encarregada de julgar se ela fora justa ou injusta.
Internamente, o procedimento não deixava de ser polêmico, como mostra um memorando do diretor Philipp Bouhler para Martin Bormann.
Bouhler exigiu, em 1941, do chefe da chancelaria do Partido a manutenção de pelo menos uma instância independente em questões de clemência, a saber, a chancelaria do Führer. O pedido não foi totalmente em vão, mas a grande maioria dessas cartas foi processada, após o verão de 1941, pelas chancelarias do Reich e do Partido que, então, procediam como descrito anteriormente. Uma sugestão do ministro da Justiça Franz Gürtner de que Hitler pudesse eventualmente “pensar na visita ao campo de Papenburger”, aliás, foi para os arquivos sem solução.

¹  Por serem já extremamente conhecidos e carregados de significado dentro do contexto do nazismo,
opto aqui por não traduzir os termos Führer (a não ser que deslocado do contexto citado),
Reich e a saudação “Heil Hitler!” – literalmente: salve Hitler! (N. T.)
²  Sigla referente a Sturmabteilung, a milícia paramilitar nazista. (N. T.)
³  Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialista Alemão. (N. T.)
Comando mais alto da Marinha. (N. T.)
⁵  Líder nacional. (N. T.)