Foi minha filha Vitória, de dez anos, quem me deu a notícia: “Pai, pai, o Dorival Caymmi morreu!…” Fiquei duplamente comovido. Primeiro, por conta da própria partida de Caymmi. Apesar de já estar com 94 anos e de, com sua silhueta de mulato contemplativo e bon vivant, poeta brejeiro, amante do mar e da gente da Bahia, ter-se eternizado em nosso imaginário como um sujeito que viveu a vida devidamente, achei lamentável e simbólico que o último de nossos clássicos compositores tenha se ido (Braguinha partira há pouco tempo, às vésperas de completar 100 anos). E depois, por ter notado a tristeza sincera com que minha filha me repassou a notícia, após tê-la lido na internet. Ela, apesar de conhecer não mais que duas ou três canções de Caymmi – gosta especialmente da primeira parte da Suíte dos pescadores, com seu encanto de canção de ninar (“minha jangada vai sair pro mar…”) –, sabe da importância histórica do baiano e me deu a má notícia com uma voz tristonha, num tom choroso, como se falasse da morte de um parente querido, embora distante.

Em meio à comoção vi uma esperança, por intuir, apesar do ceticismo que por vezes me domina, que manifestações tão altas do espírito humano, como a obra de Caymmi, por exemplo, estão fadadas à eternidade, e aquela manifestação consternada de minha filha, alvo fácil (e público-alvo) de bandas teen-agers e outros bombardeios covardes da indústria cultural, era uma prova inconteste disso.

Falo que a morte de Caymmi é simbólica por pontuar a passagem de um tempo, uma era da qual a canção foi um grande emblema, dada a importância que tinha na vida das pessoas. Há pouco tempo, uma declaração de Chico Buarque sobre o “fim da canção” causou grande polêmica. Rebuliço maior se deu nos meios acadêmicos quando, anos atrás, Francis Fukuyama decretou o “fim da História”. A palavra “fim”, em ambos os casos, não significa um fim de fato, antes simboliza uma transformação de sentido, de importância, de valor. Falar em fim da História seria falar da falência de uma perspectiva histórica, diante da urgência de nossos dias, da ditadura do agora, da desimportância do resíduo da História num tempo que só vislumbra o presente imediato. Assim como falar em fim da canção deve antes significar o fim da relevância da música popular no mundo contemporâneo, de sua influência nos costumes da sociedade, como se dava outrora. Não me espantará se algum filósofo contemporâneo alardear para breve o “fim da cultura”, se é que já não cantaram essa bola.

O certo é que a idéia de cultura, tal como se conheceu em séculos anteriores ao nosso, parece se desmantelar, diante da força implacável da “indústria cultural” (que apesar de se apropriar do status de cultura, quase nunca lhe rende tributos), da desinformação cada vez maior num mundo paradoxalmente cada vez mais cheio de informações, e num desinteresse crescente pela História, em parte propiciado pelo paraíso artificial da tecnologia, que traz a ilusão de auto-suficiência e onipotência aos mortais.

Curiosamente, lembro-me agora de uma entrevista que li da Nana Caymmi, herdeira do talento do mestre baiano, há alguns meses. Na entrevista, Nana lamentava por não ver mais estantes com livros nas casas de hoje em dia, fato para ela revelador da falta de importância da cultura na vida das pessoas. Dizer porém que esta nossa época é uma idade sem cultura seria um equívoco. O dinheiro, eis a cultura de nosso tempo.

Zeca Baleiro é cantor e compositor

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