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Cidade Líder é um bairro-dormitório da zona leste de São Paulo com 124 mil habitantes. Muitos de seus moradores, no passado, formavam o contingente dos metalúrgicos que trabalhavam nas montadoras do ABC. Hoje, a juventude nascida dessas famílias operárias abriu o leque de suas atividades porque, mesmo nas fábricas, os empregos se tornaram escassos. A saída, então, é ser, por exemplo, motoboy, frentista ou sonhar um dia se tornar motorista de ônibus ou jogador de futebol. É justamente isso o que fazem Dario, Denis, Dinho e Reginaldo, os filhos da empregada doméstica Cleuza, personagens do filme Linha de passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, que estréia na sextafeira 5. À procura de uma locação que melhor servisse ao drama dessa típica família pobre paulistana, a dupla de cineastas escolheu por acaso esse bairro paulistano. Mas é importante se ter em mente que esse ambiente e suas redondezas cuja força política colocou na Presidência do País um ex-metalúrgico é hoje uma aglomeração social sem identidade, mostrada pelo filme como um dos redutos da religião evangélica. É importante também perceber que, como em muitos filmes de Salles, mais uma vez o chefe dessa família é uma figura ausente. Salles tem uma tese a respeito: "A ausência do pai é um problema atávico. Fomos fundados por um paipatrão que, após nos nomear, partiu com todo o ouro e a prata que ele conseguiu amealhar por aqui."

Lançado em Cannes em maio passado, quando a atriz Sandra Carvelloni, que interpreta a empregada Cleuza, recebeu o prêmio de melhor atriz, o filme foi comparado, especialmente pela crítica italiana, ao clássico Rocco e seus irmãos, do diretor italiano Luchino Visconti, um dos fundadores do neorealismo. A semelhança pára no fato de ambas as produções retratarem uma família composta apenas por filhos homens. É verdade que, como o cineasta chinês Jia Zhang-ke, cujos enredos são construídos a partir do material bruto das transformações urbanas de seu país, Salles atualiza alguns métodos do neorealismo italiano ao filmar em ambientes naturais. E, no caso desse novo trabalho, é especialmente feliz ao enquadrar a realidade "concreta" de São Paulo. Ele parece fascinado pelo fluxo constante dos carros, pelo serpenteio dos viadutos e pelo cinza-chumbo do asfalto que seus personagens atravessam sem medo. O outro ensinamento neo-realista dá-se no uso de atores iniciantes ou não-profissionais (exceção feita a Sandra, estrela do Grupo Tapa, e a Vinícius de Oliveira, lançado em Central do Brasil e aqui no papel do jogador de futebol Dario). Mas, em sua estrutura, Linha de passe distancia-se da encenação trágica do diretor italiano, que em Rocco já mergulhava na fase "operística".

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Conforme sugere o título, o filme "passa a bola" entre as histórias dos vários personagens – a mãe que fica grávida e perde o emprego; o jogador de futebol que tenta a sua última chance em um time profissional; o frentista evangélico que acaba tornando-se violento e agride o patrão; o motoboy que decide partir para o roubo; e, enfim, o garoto que rouba um ônibus e sai pela cidade porque seu pai, que ele nunca conheceu, é motorista de coletivo. Esse último personagem foi inspirado numa história real e os outros bem que poderiam ter a mesma origem. Especialmente o motoboy Denis. Ao se dar mal em um roubo e fazer refém um homem engravatado, ele lhe diz em uma frase um desabafo que resume o olhar das elites sobre a massa anônima das periferias: "Me olhe, você está me enxergando?" É justamente esse o desejo de Walter Salles e Daniela Thomas nesse belo e triste Linha de passe.

ENXERGAR O OUTRO

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