i59491.jpgDesde que tomou posse na Casa Rosada, no final do ano passado, a presidente Cristina Kirchner tem repetido o mesmo gesto da foto acima. Ela une as duas mãos e olha para os céus, como quem pede ajuda. Cristina já enfrentou uma crise aguda com os agricultores, demitiu seu primeiro ministro das Finanças e agora tenta debelar mais uma onda de protestos nas ruas contra a alta recorrente de preços – a inflação, segundo estimativas independentes, estaria rodando perto de 25% ao ano, embora os índices oficiais apontem apenas 9%. Desta vez, a presidente terá de dirigir suas orações mais uma vez aos credores internacionais, o que prova que o país não consegue escapar do melancólico destino do tango Volver. Aquele em que Carlos Gardel diz ter medo de se encontrar com o passado, que, no caso argentino, é sempre um fantasma à espreita.

No momento, a angústia portenha é provocada pela desconfiança internacional de que o país dará mais um calote, assim como fez em 2001 ao decretar a moratória na dívida do governo. No ápice daquela crise, os exportadores brasileiros chegaram a ter prejuízos diários de US$ 4 milhões, porque as empresas argentinas não pagavam. A fama de mau pagador ainda percorre o mercado, principalmente porque a Argentina tem indicadores preocupantes. O volume de reservas internacionais de US$ 46 bilhões parece vultoso, mas é pequeno diante da dívida externa de US$ 160 bilhões. Além disso, as importações crescem num ritmo mais acentuado do que as exportações e o câmbio é mantido excessivamente desvalorizado por ingerência política. Se não bastasse, a dívida da Argentina aumenta vertiginosamente. Entre abril e junho, o governo gastou US$ 3,8 bilhões no pagamento de dívidas e mesmo assim o endividamento cresceu US$ 5,6 bilhões. O débito atual é superior ao de sete anos atrás, quando o país deu o calote. Por isso, apesar de a presidente Cristina Kirchner negar, há um pressentimento geral de que o país não terá condições de pagar os títulos que vencem em 2009 e 2010. "Há menos de uma década a Argentina fez uma conversão forçada da dívida e pagou 0,52 centavo por cada US$ 1", relembra Francisco Carlos Teixeira, professor de história moderna e contemporânea da UFRJ. "O país é considerado um parceiro não confi- ável. Na União Européia, ela já não é vista nem como parceiro."

Isso explica o recente panorama traçado pelo Banco Central espanhol, de que a Argentina cumpre com três das quatro variáveis de risco para os investimentos espanhóis. Ela não é confiável do ponto de vista comercial, financeiro nem bancário. Ficou atrás somente da Venezuela, que, segundo os espanhóis, é "uma ameaça em todos os pontos". Cristina respondeu com desaforo: "Eles deveriam se preocupar em prever as coisas que ocorrem na Espanha (em uma referência ao trágico acidente aéreo)." Mas Cristina não pode responder a todos os críticos. Desde que assumiu em dezembro do ano passado, seu governo é marcado por embates com o agronegócio, pela falta de combustível, pelo risco de apagão elétrico, e o governo é acusado de manipular os índices de inflação e até do crescimento do PIB.

Além disso, o governo de Cristina é identificado por uma profunda ausência de segurança jurídica e não há garantias regulatórias para os investimentos estrangeiros. A prova mais recente, com implicações no Brasil, foi a decisão da Receita Federal argentina de cobrar, retroativamente a cinco anos, um imposto das empresas e pessoas físicas, que até então eram isentas. O imposto é de 0,5%, mas as cobranças incluem 1,5% de juros mensais e multa que varia de 50% a 100%. Fontes do Itamaraty calculam que o imposto devido deve chegar a US$ 100 milhões, sem juros ou multa. "A Argentina tem uma história de quebras de contratos. É como se estivéssemos no Brasil de 1993. Só que o Brasil melhorou. A Argentina continuou o ciclo de quebra", diz Eduardo Viola, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília, que nasceu na Argentina e se naturalizou brasileiro. "Por toda essa política econômica distorcida, posso dizer que todas as condições para um calote foram criadas."

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A dúvida, contudo, sobre a capacidade de a Argentina pagar suas dívidas foi lançada pelo próprio governo. Com a falta de crédito internacional, a Argentina depende completamente de Hugo Chávez para rolar sua dívida. Só que a Venezuela tem comprado dívida com vencimento curto e juros altos. Nos últimos três anos, os Kirchners emitiram mais de US$ 6 bilhões em títulos públicos a taxas de 13%. Para se ter uma idéia, o Brasil paga 5,3% para títulos com vencimento em dez anos. Quanto maior a taxa de juros, maior é o risco. Essa é a lei. O primeiro a acusar o risco foi o banco de investimentos Lehmann Brothers. "Os mercados começam a se perguntar se a Argentina poderia estar à beira de um novo calote", escreveram os analistas do banco.

Para piorar, duas agências de risco, a S&P e a Mo ody’s, rebaixaram a nota de conf iança na Argentina. "A in certeza política está exacerbando as preocupações sobre a habilidade da Argentina de enfrentar potenciais apertos econômicos e fiscais", afirmou a Moody’s em relatório. A agência Fitch adiantou que vai rever para baixo a economia argentina e, em sua última análise sobre o país, a Morgan Stanley explicitou que o aumento da arrecadação será engolido pelos elevados gastos públicos. Agora, depois de Volver ao passado, como na canção de Gardel, é possível que Cristina Kirchner tenha de recorrer a outro tango famoso: o Cambalache, de Enrique Discépolo. Aquele cuja letra diz que dá no mesmo ser direito ou traidor.