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TUDO EM VÃO
No fórum, Bruno fica calado, mas sai sorrindo. A polícia foi procurar ossos nas
paredes das casas dos suspeitos. Achou só o óbvio: tijolos e cimento

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NOVELA
Mizael (de gravata) é o único acusado pela morte da advogada Mércia. Foi incriminado pelo vigia Evandro da Silva (camisa azul),
quando interrogado pelo delegado Antonio Olim: dois meses de investigação e nenhuma prova

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De duas, uma: ou o goleiro Bruno é o mais burro e sovina dos assassinos ou a polícia de Minas Gerais está tomando um “frango”. Para prevalecer a hipótese da idiotice e do pão-durismo tem de ser verdadeira a versão da polícia de que uma súcia de nove pessoas, Bruno no comando, se deu ao trabalho de sequestrar, torturar, matar, esquartejar e desossar a indefesa Eliza Samudio porque ela reivindicava pensão alimentícia e reconhecimento da paternidade de seu filho. Se até aqui a história já é mirabolante, vira filme de sessão da meia-noite e assombro midiático quando a polícia soma o detalhe de que os assassinos atiraram os seus restos mortais a uma matilha de rottweilers. Há também a crença de que a moça foi emparedada, embora paredes tenham sido quebradas, radares para detecção de ossos utilizados e, surpreendentemente, nelas se encontraram, adivinhem… tijolos. Qualquer jogador minimamente inteligente e famoso recorreria à Justiça no embate da pensão tentando empurrá-la às calendas, até porque abrir o coração na hora de engravidar amantes e fechar o bolso quando os filhos nascem não é novidade no campo do futebol. Da sovinice e da burrice ao ato de trucidar alguém existe uma distância imensurável, mas pode mesmo ter sido esse o único motivo do crime. A polícia deveria, porém, investigar em outra direção: não estariam os suspeitos envolvidos com tráfico, uma vez que a atrocidade cometida é o modus operandi de traficantes ao eliminarem seus desafetos?

Vale considerar então a segunda tese, a da polícia “frangueira”: Bruno e sua turma podem ser os bárbaros assassinos de Eliza Samudio, e lá se vão quase dois meses que a moça sumiu, sequestrada no Rio de Janeiro e transportada para Minas Gerais. Há nove pessoas presas, há delegados e delegadas sob holofotes falando diuturnamente, há diariamente improdutivos interrogatórios e há uma justa indignação popular. Mas não há, até agora, uma única prova concreta, técnica e científica contra os acusados. Em São Paulo, no mesmo pé está a investigação sobre a morte da advogada Mércia Nakashima, com a polícia reiterando a cada hora que o matador é seu ex-namorado, o também advogado Mizael Bispo Souza. Até a sua prisão temporária e preventiva já foi pedida e a Justiça não a concedeu. Nem poderia. Não há uma prova real contra Mizael. Tanto ele quanto Bruno e seus amigos e amantes podem estar envolvidos nos assassinatos até a medula. O que se lamenta, entretanto, é a lerdeza da polícia na produção e apresentação de provas factuais – e mesmo que essas provas sejam apresentadas já, nesse instante, num piscar de olhos, ainda assim a demora em fazê-lo, até a quinta-feira 22, em nada desmente o título desta reportagem: “A polícia que nada prova”.

“Há policiais que metem uma coisa na cabeça, em seus gabinetes, e só investigam na direção dessa coisa. A realidade tem de se adequar ao que eles pensam e isso tem tudo para dar errado”, diz a professora de direito penal, de direito processual penal e coordenadora de pós-graduação em perícia criminal da Faculdade Damásio de Jesus, Roselle Soglio. “Se fizeram com Eliza a barbaridade que a polícia afirma, isso tem de ser investigado como uma rede de traficantes. É o tráfico que mata dessa forma.” Juntamente ao fato de a polícia investigar os casos Bruno e Mizael “de dentro para fora”, lamentavelmente se enraíza no Brasil o estrelismo de algumas autoridades que falam demais durante o inquérito – e isso ajuda culpados a se precaverem, leva a pré-julgamento de inocentes e confunde a sociedade. “Não há mais inquérito policial como prevê a lei. O que existe são investigações públicas”, diz o advogado Adriano Salles Vanni, um dos mais conceituados criminalistas do País. Também a discordar da ampla divulgação das investigações (estardalhaço que tromba com o artigo 20 do Código de Processo Penal), o criminalista Nélio Andrade afirma: “Esse delegado (Edson Moreira, chefe do Departamento de Investigações de Homicídios da Polícia de Minas Gerais) tem de calar a boca.” A rigor, quanto mais a polícia fala, e menos prova, mais ela fica refém de suas declarações e se desmoraliza quando carece de se desdizer. Ao mesmo tempo, dá chance para que testemunhas e investigados mudem seus depoimentos num infinito vaivém. Nos casos em questão, a polícia ouviu muito, falou muito, mas provou pouco.

O menor J., por exemplo, que na quinta-feira 22 depôs em juízo, mudou seis vezes a sua versão na fase de inquérito para o sequestro e morte de Eliza (ficará três anos internado pelo crime de cárcere privado). Foi J. quem introduziu rottweilers no enredo, mas já antes da audiência o seu advogado adiantava que a história dos cachorros era “delírio do adolescente” e que a polícia “colocara palavras em sua boca”. Bruno também foi à audiência, manteve perante o juiz o silêncio sepulcral dos interrogatórios anteriores e saiu rindo do fórum. Ao contrário dele, quem disparou a falar, e sempre mudando as versões, foi a ex-namorada Fernanda de Castro, uma das mulheres que tomaram conta do filhinho de Eliza: a) disse que não estivera em nenhum motel junto com Bruno, no trajeto Rio de Janeiro-Belo Horizonte, quando Eliza foi sequestrada; b) disse que estivera apenas com Bruno nesse motel e que não vira o suspeito Luiz Henrique Romão, o “Macarrão” (tem tatuada nas costas declaração de amor ao ex-goleiro); c) voltou atrás e disse que vira “Macarrão” no motel. Também Dayanne Souza, ex-mulher do ex-jogador, atordoou os responsáveis pelo inquérito: eles vinham cravando publicamente que Eliza fora assassinada no dia 9 de junho. Pois Dayanne garantiu que esteve com ela no dia 10 e os policiais tiveram de refazer todas as contas. Ou seja: resultado zero.

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“A polícia mete uma coisa na cabeça e só investiga nessa direção”
Roselle Soglio, professora de direito processual pena

“A prova técnica é decisiva”, diz o perito Mauro Ricart, chefe em duas gestões da Polícia Científica do Rio de Janeiro. “As investigações deveriam acompanhar o trabalho da perícia, e não a perícia ficar a reboque daquilo que os delegados falam. Dessa forma, todos falham”, diz Roselle. No inquérito de Bruno, há duas lacunas que qualquer perito debutante tira de letra: encontraram mancha de sangue de Eliza no Range Rover de Bruno, e pararam aí. É óbvio que é só verificar em laboratório se essa mancha é contemporânea ao desaparecimento de Eliza e muita coisa seria provada. Outro ponto: a polícia ficou martelando que os investigados não quiseram ceder material biológico para exame de DNA. Mas será que com tantas buscas em todas as casas não deu para recolher uma escova de dentes, um pente, um fio de cabelo, uma cueca, uma calcinha e, dessas peças, extrair material biológico? Quanto à investigação que cerca Mizael, a situação é pior: policiais disseram que havia cristais de terra no calçado do suspeito compatíveis com cristais de terra da margem da lagoa em que o carro de Mércia foi jogado no interior de São Paulo. É uma prova bisonha. Quantos cristais iguais a esses não existem em todo o Brasil? Houve uma falha mais grave ainda que expõe o pecado original de nove entre dez investigações no Brasil: a preservação do local do crime. Um caso emblemático é o assassinato do coronel Ubiratan Guimarães, em São Paulo, quando 28 pessoas estiveram nos 25 metros quadrados do cenário do crime (a sala de seu apartamento). A mesma contaminação de provas se deu no carro de Mércia, deixando dúvidas pendentes: segundo a polícia, ele foi mergulhado de frente. Então como foi retirado também de frente? O certo é que a seis metros de profundidade o automóvel “capotou” e ficou com as rodas para o alto. Os vidros estavam semiabertos mas, nessa posição, eles passaram a ser obstáculos para a saída do corpo de Mércia porque, com a entrada da água, ele subiu e ficou junto ao piso, agora voltado para cima. Como então o corpo foi encontrado fora do automóvel? É por isso que o veículo deve ter sido virado antes de ser trazido à superfície: adeus rigor científico. Finalmente, muito se falou que o carro tinha de secar para que se colhessem digitais. Absurdo: o Brasil leva o mérito de ser o país que desenvolveu reagentes para colher digitais em superfícies completamente molhadas.

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