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DOR DOS PAIS
Raul Mascarenhas, pai de Rafael, abraça Cissa Guimarães, mãe do rapaz, momentos antes da cremação do corpo, na quinta-feira 22

Eram 2h30 da madrugada da terça-feira 20 quando o telefone tocou no apartamento da atriz e apresentadora Cissa Guimarães, na Gávea, no Rio de Janeiro. Do outro lado da linha, o jovem João Pedro Gonçalves, 19 anos, transmitia uma notícia trágica. Seu colega Rafael, filho caçula de Cissa, havia sido atropelado e estava sendo atendido no Hospital Municipal Miguel Couto, no Leblon. Preocupada, Cissa seguiu imediatamente para o hospital. Lá, testemunhou o empenho dos médicos na tentativa de salvar seu filho. Mas, por volta das 8h, ouviu a pior notícia que uma mãe pode receber. Rafael Mascarenhas, 18 anos, estava morto. Morreu no auge da juventude, deixando para trás sonhos, projetos e um futuro que nunca existirá. Com politraumatismo na cabeça, no tórax, nos braços e nas pernas, não resistiu aos ferimentos. Quatro horas depois, sedada e aos prantos, Cissa ainda teve forças para deixar sua imensa dor registrada no Twitter: “Em luto!”.

As circunstâncias da morte só servem para aumentar o sofrimento da família. Rafael foi arrebatado quando andava de skate numa pista interditada do túnel acústico entre os bairros da Gávea e São Conrado. Dois automóveis entraram em alta velocidade no trecho proibido e um deles – o Siena KXR-0394, dirigido pelo estudante Rafael de Souza Bussamra, 25 anos – bateu na vítima pelas costas, arremessando-a a uma distância de 60 metros. Amparada pelos filhos mais velhos, Thomaz e João, mas tomada pela dor, Cissa perguntava aos amigos, ainda no hospital: “Onde vou arranjar forças para seguir em frente?”.

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A tragédia tem a mesma origem de tantos outros dramas semelhantes vividos no País: a imprudência de motoristas que usam carros em alta velocidade como se fossem brinquedos inofensivos. “Eles estavam batendo pega”, disse Luiz Quinderé, 20 anos, que andava de skate no túnel com Rafael e João Pedro. Os três fazem parte do mesmo grupo de rock, o The Good Fellas Band, e momentos antes estavam ensaiando num apartamento da Gávea. “Ainda lembro da expressão do Rafael tocando guitarra e sorrindo naquele ensaio”, recorda João Pedro, o pianista. “Ele era uma pessoa feliz.” Uma das músicas tinha o título premonitório de “Bad Day” (dia ruim, em inglês). Depois de tocar, como já haviam feito outras vezes, o filho de Cissa e dois de seus companheiros de banda resolveram aproveitar a noite amena do inverno carioca para andar de skate. Os três eram adeptos do estilo downhill, em que o skatista percorre grandes distâncias em um plano inclinado – para isso, o declive do túnel acústico em direção à zona sul é um espaço perfeito. As manobras, no entanto, acabaram interrompidas de forma inesperada. “Os caras estavam ‘voando’ e gritando”, conta João Pedro, referindo-se aos ocupantes do Siena que atropelou Rafael e do Honda Civic que estava ao lado, também em alta velocidade.

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“Onde vou arranjar forças para seguir em frente?”
Cissa Guimarães

Apesar de Bussamra e seus três amigos negarem que participavam de um racha, a polícia tem poucas dúvidas quanto a isso. Eles seguiam em direção à Barra da Tijuca e, no meio do túnel acústico, usaram uma passagem proibida para ter acesso à pista no sentido zona sul, interditada ao tráfego. Pouco à frente, aconteceu o atropelamento. Horas depois, Bussamra e seu pai levaram o Siena ao lanterneiro Paulo Sérgio Muglia, em Quintino, na zona norte. Segundo o mecânico, eles pediram para que a frente do veículo, bastante amassada, fosse consertada com urgência, o que faria desaparecer os vestígios do acidente. “Eu estranhei a pressa, achei que tinha marcas de pele humana no para-choque”, disse Muglia. Entre janeiro e junho, o carro recebeu cinco multas por excesso de velocidade.

Para piorar, o caso teve ingredientes de negligência policial. Logo depois de atropelar Rafael, o Siena foi abordado por uma viatura da Polícia Militar na saída do túnel Zuzu Angel, próximo à Rocinha, uma continuação do túnel acústico. Mesmo com o carro com a frente arrebentada e o para-brisa quebrado, os policiais liberaram Bussamra, que naquele momento poderia ser preso em flagrante. Confrontados com as imagens de uma câmera de vídeo que documentou a negligência, o sargento Marcelo Martins e o cabo Marcelo Bigon argumentaram que não prenderam o motorista porque “não viram nada de errado com o carro”, que naquele momento tinha a parte dianteira completamente destroçada.

Depois de expedir uma nota em defesa dos policiais, o comando da PM voltou atrás e afastou os dois, que estão sob investigação – entre as hipóteses está a possibilidade de o atropelador ter pago propina para ser liberado. “Um carro, no estado em que estava, amassado daquele jeito, ser liberado pela polícia é um absurdo, é uma impunidade”, criticou, emocionado, o pai da vítima, o músico Raul Mascarenhas. Ele estava na Itália e viajou às pressas para o Rio para acompanhar a cremação do corpo do rapaz, feita na manhã da quinta-feira 22. “A dor de perder um filho é imensa. Eu não vou mais vê-lo, mas ele está dentro de mim”, disse o músico, muito emocionado, depois de abraçar e chorar com Cissa a morte de Rafael.

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Dezenas de amigos – muitos da classe artística – foram ao cemitério e a revolta era o traço comum. “O trânsito está cheio de psicopatas, estamos beirando a barbárie”, criticou a atriz Marília Pêra. “Precisamos de menos velocidade e mais leis.” A atriz Beth Goffman defendeu punição mais severa: “O carro é uma arma nas mãos de gente mal-educada. A impunidade é que faz acontecer coisas desse tipo”, disse. Esse também é o diagnóstico de vários especialistas no assunto, que reclamam das autoridades e das leis pouco severas para os crimes praticados ao volante. “Todos os anos morrem no Brasil 40 mil pessoas vítimas de desastres de trânsito. Outras 800 mil ficam feridas, das quais mil com lesões irreversíveis. Mas ninguém é preso”, diz David Duarte Lima, especialista em engenharia de trânsito da Universidade de Brasília. “Existe uma completa impunidade.” O rigor com que outros países tratam casos de imprudência ao volante deveria servir de exemplo. Mesmo sem ferir ninguém, a atriz americana Lindsay Lohan foi condenada a cumprir pena de 90 dias numa penitenciária feminina por dirigir embriagada.

A falta que o filho faz não deixa espaço no coração de Cissa para que ela pense na punição do culpado por sua morte. “Ela não faz nenhuma cobrança. Se pudesse, de fato, até parava a investigação. Não quer nem ouvir falar”, diz a irmã, Bali Pinheiro Guimarães. A atriz passou os últimos dias na cama, dopada. Disse à irmã que pretende voltar a trabalhar na peça “Doidas e Santas” assim que tiver condições. “É a terapia dela e uma homenagem ao Rafael, que dava muita força para a carreira da mãe”, conta Bali. Espera-se que, para além da dor, Cissa continue assim, tirando da lembrança do rapaz as forças que precisa para seguir em frente.

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CULPADO
Rafael Bussamra, que atropelou o filho de Cissa, e o carro amassado pela colisão
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Colaborou Adriana Prado