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TRANSIBERIANA
No livro “O Aleph”, Paulo Coelho narra sua viagem de trem pela Rússia. Abaixo, a partida em Moscou

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Já se vão 24 anos desde que o escritor Paulo Coelho empreendeu sua peregrinação de três meses pelo caminho de Santiago de Compostela, local sagrado na Espanha, e escreveu o seu bestseller “O Diário de um Mago”, traduzido em mais de 20 idiomas. Depois de 11 livros editados e 135 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, Coelho reassumiu o estilo original que o consagrou e consiste em aliar autoajuda, misticismo e espiritualidade em aventuras narradas como se fossem um diário íntimo. Em 2006 partiu numa viagem por três continentes, Europa, África e Ásia, para escrever o seu novo romance, “O Aleph” (Sextante) que agora é lançado. O título é emprestado da obra do escritor argentino Jorge Luis Borges, o que já havia ocorrido em “Zahir”, de 2005, revelando uma identificação do mago com o realismo mágico que imortalizou Borges. Na abertura do livro, ele reproduz um trecho do conto homônimo do argentino: “O diâmetro de Aleph é de dois ou três centímetros, mas o Universo inteiro estava ali (…) Cada coisa era infinita porque eu a via claramente de todos os ângulos do Universo.” A nova obra de Coelho, no entanto, prioriza as narrações confessionais em que o autor descreve seus esforços na busca de “crescimento e renovação espiritual”.

A experiência mística – e outras nem tão místicas – permeiam a longa travessia de trem pela Rússia a bordo da mítica ferrovia Transiberiana. O percurso que vai de Moscou a Vladivostok tem aproximadamente dez mil quilômetros e cruza remotos vilarejos e cidades russas. Coelho viajou ao longo de 40 dias em companhia de uma insistente leitora e fã do escritor (Hilal, a quem o livro é dedicado), de uma editora e de um tradutor de origem chinesa fluente em russo e outros dialetos. Juntos eles passaram por sete diferentes fusos horários – tempo de insights espirituais, contato com outras culturas, muitas vodcas, conversas sobre história, filosofia e até de envolvimento romântico com a sua leitora Hilal, sobre quem ele escreve: “Seus olhos refletiam amor e morte ao mesmo tempo”. Embora existam passagens sensuais envolvendo o narrador e sua admiradora, a relação amorosa entre ambos é apresentada como um contato apenas espiritual. Eles declaram mútuo amor, e Hilal é descrita nua diante do narrador, mas ele a aconselha a ir praticar o seu violino. “Eu a desejei e fiz amor com ela sem tocá-la e sem ter um orgasmo”, escreve o narrador, em mais uma passagem que sugere misturar ficção e realidade, mas que reforça um clima de mistério em torno das aventuras experimentadas pelo autor.

Diferentemente da peregrinação que deu origem ao “O Diário de um Mago”, em 1985, quando Coelho ainda não era famoso, a partida para a travessia pela transiberiana atraiu mídia e uma legião de fãs à estação ferroviária em 2006. Num trecho em que fala de sua partida de Moscou, enquanto aguardava a locomotiva, ele diz: “As pessoas vêm conversar, mas eu me afasto. Não quero pensar em mais nada, a não ser que estou aqui, agora, pronto para mais uma partida, um novo desafio.” Entre os desafios está o aprendizado adquirido no caminho do “exercício do anel de luz”, uma forma de viajar pelo tempo e enxergar momentos do passado. Ao final do livro, ele alerta o leitor sobre o exercício: “Qualquer volta ao passado sem o mínimo de conhecimento do processo pode trazer consequências dramáticas e desastrosas.” Quem não busca iluminação espiritual, mas aprecia aventuras, terá em “O Aleph” uma instigante sugestão de viagem.

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Leia abaixo um trecho do primeiro capítulo do novo livro de Paulo Coelho, "O Aleph"

REI DO MEU REINO

NÃO!
De novo um ritual? De novo invocar as forças invisíveis para que se manifestem no mundo visível? O que isso tem a ver com o mundo em que vivemos hoje? Os jovens saem da universidade e não conseguem emprego. Os velhos chegam à aposentadoria sem ter dinheiro para nada. Os adultos não têm tempo de sonhar – passam das 8 horas da manhã às 5 da tarde lutando para sustentar a família, pagar o colégio dos filhos, enfrentando aquilo que todos nós conhecemos pelo nome resumido de “dura realidade”.
O mundo nunca esteve tão dividido como agora: guerras religiosas, genocídios, falta de respeito pelo planeta, crises econômicas, depressão, pobreza. Todos querendo resultados imediatos para resolver pelo menos alguns dos problemas do mundo ou de sua vida pessoal. Mas as coisas parecem mais negras à medida que avançamos em direção ao futuro.
E eu aqui, querendo seguir adiante em uma tradição espiritual cujas raízes se encontram em um passado remoto, longe de todos os desafios do momento presente?
JUNTO COM J., A QUEM CHAMO DE MEU MESTRE, embora comece a ter dúvidas a respeito, caminho em direção ao carvalho sagra – do, que está ali há mais de 500 anos, contemplando impassível as agonias humanas; sua única preocupação é entregar as folhas no inverno e recuperá-las de novo na primavera.
Não aguento mais escrever sobre minha relação com J., meu guia na Tradição. Tenho dezenas de diários cheios de anotações de nossas conversas, que nunca releio. Desde que o conheci em
Amsterdã, em 1982, aprendi e desaprendi a viver uma centena de vezes. Quando J. me ensina algo novo, acho que talvez ali esteja o passo que falta para chegar ao cume da montanha, a nota que justifica uma sinfonia inteira, a letra que resume o livro.
Passo por um período de euforia, que aos poucos vai desaparecendo.
Algumas coisas ficam para sempre, mas a maioria dos exercícios, das práticas, dos ensinamentos termina por desaparecer em um buraco negro. Ou, pelo menos, assim parece.

★ ★ ★

O CHÃO ESTÁ MOLHADO, IMAGINO QUE MEUS TÊNIS tão meticulosamente lavados dois dias antes estarão de novo cheios de lama em mais alguns passos – independentemente do cuidado que possa ter. A minha busca por sabedoria, paz de espírito e consciência das realidades visível e invisível já se transformou em rotina e não dá mais resultado. Quando tinha 22 anos, comecei a me dedicar ao aprendizado da magia. Passei por diversos caminhos, andei à beira do abismo durante anos importantes, escorreguei e caí, desisti e voltei. Imaginava que, quando chegasse aos 59 anos, estaria perto do paraíso e da tranquilidade absoluta que penso ver nos sorrisos dos monges budistas.
Pelo contrário, parece que estou mais distante que nunca.
Não estou em paz; vez por outra entro em grandes conflitos comigo mesmo, que podem durar meses. E os momentos em que mergulho na percepção de uma realidade mágica duram apenas alguns segundos. O suficiente para saber que este outro mundo existe, e o bastante para me deixar frustrado por não conseguir absorver tudo o que aprendo.
Chegamos.
Quando acabar o ritual, irei conversar seriamente com ele.
Nós dois colocamos as mãos no tronco do carvalho sagrado.

 


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