Seis dias após a queda do Muro de Berlim, os brasileiros também realizaram um sonho de democracia. Foi realizada no dia 15 de novembro de 1989 a primeira eleição direta para presidente da República desde 1960. Esse direito, cassado pela ditadura militar em 1964, foi restaurado com muita luta. Milhões saíram às ruas em todo o País pelas Diretas-Já em 1985, confiando no desgaste do regime autoritário, mas viram o anseio ser derrotado no Congresso, que se dobrou à pressão dos militares. Três anos depois, a Constituinte de 1988 restabeleceu o direito elementar. Em meio ao otimismo, acreditava-se que o exercício pleno da cidadania funcionaria como uma vara de condão mágica capaz de eliminar todas as mazelas da política nacional.

Houve, sim, avanços institucionais desde lá, mas a cena política continua contaminada pelos vícios do passado. “A retomada das eleições diretas foi uma conquista de todos os brasileiros. Mas falta ao País consolidar os princípios republicanos. É preciso realizar uma reforma política que dê vez a quem de fato detém a soberania: o povo”, afirmou à ISTOÉ a socióloga Maria Victória Benevides, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

A primeira grande decepção veio com o resultado em si da eleição. Setores da sociedade  que se mobilizaram contra a ditadura apostavam numa guinada radical nos destinos do País. Davam como certo, por exemplo, que o modelo econômico adotado durante o regime militar seria definitivamente sepultado.

Leonel Brizola, comandante do PDT, dizia que era preciso dar um “não rotundo” ao que ele chamava de “perdas internacionais”.

img1.jpg
2009
Duas décadas foram o bastante
para transformar dois inimigos
ferrenhos em aliados políticos

O sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, líder do PT, denunciava o acordo com o FMI e prometia taxar os ganhos do mercado financeiro. Ulysses Guimarães, do PMDB, e Mario Covas, do PSDB, eram mais prudentes, mas também pregavam mudanças. As propostas de novos
rumos encontravam eco na esquerda brasileira e numa parcela mais intelectualizada e urbana do País. Mas não foi o bastante.

Quem, de fato, conquistou a opinião pública foi o conservador Fernando Collor de Mello. Jovem e com a imagem de um “novo” personagem na política brasileira, o então governador de Alagoas conseguiu arrebatar a maior parte da população brasileira com um discurso populista, contra a corrupção e “em defesa dos descamisados”. Collor usou métodos condenáveis, desde o abuso do poder econômico a ataques à honra pessoal, passando pela manipulação dos meios de comunicação.

Ficou célebre a edição enviesada do debate de Collor e Lula que a Rede Globo levou ao ar, privilegiando o candidato do PRN. A campanha
de Collor foi feita, sem dúvida, com o que existe de pior em termos de conscientização política. Apesar disso, acadêmicos e políticos concordam que o crucial no pleito de 1989 foi o retorno do País à democracia. “O mais importante de tudo é a eleição popular. É a contraposição entre ditadura e o regime democrático”, afirma Fábio Wanderley Reis, professor emérito de ciência política, da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). O presidente do PPS, Roberto Freire, que foi candidato ao Planalto pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), lembra que havia quase 30 anos que ninguém votava para presidente da República e o Brasil inteiro estava engajado no processo eleitoral.

img2.jpg

img3.jpg
1989 De punhos cerrados, eles travaram uma batalha sem limites na eleição mais disputada da história

Não houve, segundo ele, um grande centro universitário que não tivesse realizado um debate. Os candidatos percorriam escolas, e consultas prévias eram feitas até dentro de aviões. “Foi o momento mais marcante da minha vida política”, disse à ISTOÉ Freire. Até mesmo o polêmico Paulo Maluf, que havia disputado – e perdido – as eleições indiretas em 1984 e chegou em quinto lugar no primeiro turno como candidato do PDS, admite que “1989 foi muito bom para a democracia”.

Mas poderia ter sido bem melhor.
A vitória de Collor significou a manutenção da política oligárquica, do caciquismo e dos sérios vícios da política brasileira. E marcou, ao mesmo tempo, o fim da linha para as ambições de Brizola, que sonhava com a Presidência da República desde 1964, e de Ulysses, que teve votação muito pequena à frente de um PMDB que já exibia suas garras oportunistas.

Lula, derrotado por uma diferença de quatro milhões de votos, preparou-se para embates futuros e hoje preside o País. Na eleição direta de 1989, a sorte sorriu para Collor, que se refestelou no poder com seus amigos como quem divide um butim. Mas a orgia e os desatinos, entre os quais o confisco da poupança, duraram pouco. Em 1992, Collor, sob a acusação de corrupção, tornou-se o primeiro presidente a sofrer um processo de impeachment. Contudo, numa prova maior da fragilidade dos princípios republicanos do País, Collor voltou ao Congresso em 2007, pelo voto popular. “O indigitado expresidente voltou à vida pública com todas as honras, mas sem nenhuma modificação em seu perfil”, lamentou Maria Victória.

A bem da verdade, Collor não só soltou à vida pública como pertence hoje ao círculo de políticos de confiança do presidente Lula. O que serve para comprovar que a eleição direta repôs o Brasil no leito democrático, mas não foi capaz de modernizar as práticas dos homens públicos. Isso só acontecerá quando a tão prometida reforma política se tornar realidade.

Continuam a pedir urgência questões como a fidelidade partidária, a cláusula de barreira, o voto em lista, o voto proporcional misto, o financiamento público de campanha e o papel mais rigoroso da Justiça Eleitoral.

Para Reis, está em tempo também de o Brasil reabrir a discussão sobre o sistema parlamentarista de governo.

“Na teoria, é algo perfeitamente defensável. O parlamentarismo exige mais empenho da classe política”, afirmou Reis. Já Maria Victória mostra-se cética diante da possibilidade de o Congresso decidir aprovar uma reforma política mais eficaz: “Se a reforma ficar restrita à decisão dos que serão afetados pela mudança, não vai avançar. Os políticos não vão cometer um suicídio”, disse Maria Victória. Ela acredita que o quadro atual só mudará com a efetiva participação popular. O sociólogo Murilo de Aragão, da Arko Advice, adverte que “o processo democrático não se encontra na prateleira, é uma conquista diária”.

Portanto, 20 anos depois da eleição de 1989, ainda é preciso aprimorar a democracia, talvez exigindo uma outra forma de fazer política.

img4.jpg