Onqotô? A expressão mineira para “onde é que eu estou?” serve de título ao mais novo espetáculo do Grupo Corpo, com estréia marcada para o dia 10, no Teatro Alfa, em São Paulo. Uma pergunta bem adequada ao clima criativo da companhia, às vésperas da estréia de mais uma grande coreografia. Quem passa diante do número 866 da avenida Bandeirantes, aos pés da serra do Curral, na zona sul de Belo Horizonte, não imagina que no predinho de concreto de três andares, incrustado numa das áreas residenciais mais caras da capital mineira, o ambiente seja de trabalho ininterrupto. É nas duas salas de ensaio e no palco do pequeno teatro de 190 lugares que os 20 bailarinos da trupe mineira literalmente suam seis horas por dia para manter o título de melhor companhia de dança do País. Isso vem acontecendo há 30 anos e, para comemorar a data, o grupo criado pelos irmãos Pederneiras – Paulo, 54 anos, diretor-geral e artístico; Rodrigo, 50, coreógrafo; Pedro, 53, diretor técnico; Miriam, 47, assistente de coreografia; e José Luiz, 55, fotógrafo – convidou Caetano Veloso e José Miguel Wisnik para compor a trilha especial, batizada com o mineiríssimo Onqotô. “Mas o espetáculo é na verdade mineiro-baiano-carioca-paulista”, brinca Rodrigo. “É um Brasil jogado no chão mesmo, escancarado”, afirma ele, enfatizando a idéia da coreografia de trabalhar a dicotomia entre a terra e a elevação do espírito.

Aniversário – Na quinta-feira 21 de julho, IstoÉ assistiu com exclusividade aos ensaios finais do balé, que tem muitos movimentos de solo e pas-de-deux nervosos, quase violentos. Era o aniversário de Paulo, o cabeça e criador do grupo e, portanto, ocasião privilegiada para se observar como funciona a equipe coesa de feras, que conta ainda com a arquiteta Freusa Zechmeister na criação dos figurinos, o artista plástico Fernando Velloso como cenógrafo e coordenador de programação e a ex-bailarina Carmen Purri como diretora de ensaios e assistente de coreografia. Em torno de uma farta mesa de salgadinhos e garrafas de Mate Couro, uma delícia que só se bebe nas Gerais, o clima era de intimidade perversa. “O Paulo quando cisma com alguma coisa não muda”, alfinetava Freusa, diante da fixação do amigo em um palitinho de massa crocante de queijo, sem olhos para as outras guloseimas. Com o cenário feito de tiras de borracha preta ainda na fase de testes, Paulo tentava relaxar. “Nada tem importância”, suspirava. No que é criticado por Veloso. “É, agora nós ficamos assim, niilistas.” Pressionada na finalização dos figurinos, que, insatisfeita, já mandou mudar duas vezes, Freusa diz que é assim mesmo que funciona o grupo. “Em Lecuona (espetáculo anterior, que será reprisado junto com Onqotô), eu passei a noite nos bastidores coturando vestidos no corpo das bailarinas. Esse ainda não está pronto, mas desde o início eu já sei como vai ser.”

Circular pelos corredores e escadas da sede do Corpo, atravessando sem o olhar de qualquer guia desconfiado o labirinto de camarins, salas particulares e área técnica, é mergulhar num ambiente de pura criação. Sentado no meio do teatro, ao lado da assistente Carmen Purri, Rodrigo está às voltas com a finalização da coreografia. É a chamada fase de limpeza, quando o movimento de cada bailarino é anotado num bloco para ser aperfeiçoado no ensaio seguinte. O coreógrafo ainda estava na dúvida se mantinha ou não a canção Pesar do mundo, de Wisnik e Paulo Neves, cantada por Caetano, na penúltima sessão do balé. A música responde pelo lado lírico do espetáculo, juntamente com Madre Deus, de Caetano, interpretada por Wisnik, com melodia semelhante à de Sábado em Copacabana, de Dorival Caymmi. O verso “Frente ao infinito/costas contra o planeta” sugeriu uma bela dança de corpos deslizando no linóleo preto do palco. “Quis que a coreografia jogasse para o chão, mas tivesse sempre o contraponto de uma suspensão, uma elevação”, explica Rodrigo.

Muitas vezes os bailarinos se lançam nas tábuas em saltos que lembram os jogadores de futebol, outra das inspirações do espetáculo, especialmente no rap
Big bang, que usa o comentário de Nelson Rodrigues “O Fla-Flu começou 40 minutos antes do nada” para inserir o Brasil no mundo. “No início era muito
difícil para os bailarinos, mas agora já estão acostumados”, explica o coreógrafo. “Você sente isso quando eles reclamam da dor, em razão do trabalho de outro
tipo de musculatura.” Mulher de Rodrigo, a mineira Ana Paula Couret, 34 anos e
dez de Corpo, diz que todos apanharam muito nessa coreografia. “Todo mundo saía quebrado, com as mãos e os cotovelos machucados”, lembra. Ela conta que muitos passos surgiram de brincadeiras no palco. “O Rodrigo dá uma liberdade legal. Às vezes, pede: faça alguma coisa. Muitas idéias acabam ficando.” O que
não quer dizer que ele crie improvisando do nada. Responsável por estabelecer
uma sintaxe da dança moderna brasileira, Rodrigo tem seu lado disciplinado,
óbvio. E é muito exigente nos ensaios.

A maratona começa às 11 horas, depois de uma hora e meia de balé clássico, e vai até as 15h, religiosamente, de segunda a sexta-feira. Com seu corpinho de gazela, a mineira Ana Paula Cançado, 35 anos e 13 de Corpo, diz que come de tudo e não faz nada para manter a forma. Nem precisa. Apelidada de Tia Paulinha, por ser a mais velha no grupo, ela afirma que já está habituada com o rigor da trupe. “Tudo é observado milimetricamente. No final de cada ensaio, o Digo corrige todos os erros de colocação, de espaço, tempo e movimento.” Ana Paula entrou para o Corpo encantada com o espetáculo A missa do orfanato (1989), com música de Mozart, um dos marcos da companhia. Na época, a concorrência não era tão grande. Hoje, conseguir um lugar na sala de ensaios é mais difícil que passar num vestibular de medicina. A última audição, por exemplo, atraiu 450 bailarinos para duas vagas. Agora o grupo prefere selecionar os candidatos pessoalmente, sem concurso, caso do paulistano Filipe Bruschi, 26 anos, que entrou em janeiro. Na primeira tentativa, ele enfrentou 100 concorrentes e foi para a final com mais seis. Caiu fora, mas foi chamado este ano. Onqotô é sua estréia. “Já reservei dez convites para minha família”, conta.

Conhecido no Exterior com o aposto de Brazilian Dance Theater, o Corpo faz jus ao título, já que tem dançarinos de São Paulo, do Recife, de Natal, de Belo Horizonte, de Rio de Janeiro, de Brasília e de Belém. “São bailarinos excepcionais, mundialmente falando”, gaba-se Rodrigo. Eles ganham um salário de R$ 2.500 e a maioria divide apartamento com os colegas, já que passam cerca de seis meses longe de casa. Com a agenda lotada até 2007, a companhia estréia o ano que vem na Ásia, apresentado-se em Cingapura, Malásia e Macau. “Em 2004, tivemos um convite para apresentar na China, mas recusei por causa da gripe do frango”, conta Paulo, o criador do grupo, diante do mapa-múndi que decora sua sala. Em Lyon (França), por exemplo, eles já estão com a lotação esgotada para 13 apresentações na cotada Maison de la Danse. O crescimento traz problemas logísticos, que, segundo Pedro, o diretor técnico, os obrigou a ter um galpão para acomodar os cenários dos programas europeus na cidade alemã de Dachsbach. Acidentes, claro, acontecem. Em 1998, por exemplo, as caixas com os figurinos de Nazareth e 21, mais dois espetáculos que marcaram época, não chegaram à cidade finlandesa de Kuopio, vindas da Espanha. “Foi a primeira vez que apresentamos sem figurino”, lembra Pedro. Foram ovacionados. “As pessoas começaram a chorar. Ficamos perguntando o que fizemos de errado”, conta o alemão Stephan Böettcher, ex-bailarino, hoje na técnica. No caso do Grupo Corpo, a excelência da dança dispensa até mesmo a mais sofisticada embalagem.