Comportamento

O poder da superação
Rodrigo Cardoso e Suzane Frutuoso
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Antes de ler esta reportagem, faça um exercício. Feche os olhos e lembre de um momento emocionalmente difícil de sua vida. Recorde a cena em detalhes. Se possível, escreva e releia. Não se surpreenda se o coração apertou. Um estudo da Universidade de Purdue (EUA), publicado em setembro na revista científica Psychological Science, provou que lembranças de experiências emocionais dolorosas machucam mais do que a recordação de dores físicas. E também demoram mais a ser cicatrizadas. As vítimas da tragédia de Santa Catarina, por exemplo, mal notarão possíveis cortes e hematomas no corpo, enquanto relembram as imagens de toda uma vida perdida em meio à chuva e à lama. A boa notícia: grandes tristezas podem ser superadas.

i79790.jpgOs pesquisadores de Purdue distribuíram questionários a voluntários que relataram eventos dolorosos pelos quais passaram nos últimos cinco anos. Quanto mais difícil a experiência, menor a pontuação nos testes. Eles deveriam descrever intensidade, tempo e sensações que tiveram. A pontuação nos testes foi maior entre aqueles que lembraram das dores físicas, como dor de dente, nas costas ou de ossos quebrados. A dor emocional permanece por mais tempo e com mais força na memória. "Imagine que seu companheiro termina a relação para ficar com sua melhor amiga. Esse será um momento de dor extrema. E, se você relembrá-la dentro de um mês ou dez anos, ela pode ser revivida na mesma intensidade", disse à ISTOÉ Kipling Willians, um dos coordenadores da pesquisa. "A dor emocional tem uma capacidade única de voltar à mente e ferir de novo nossos sentimentos."

Tanto a dor física quanto a emocional acontecem no córtex, responsável por funções como julgamento e percepção no cérebro. Mas não se sabe o que leva memórias ligadas à emoção a serem mais presentes. O que se tem certeza é que os sentimentos negativos provocados pelo sofrimento podem mudar completamente a vida de alguém, além de resultar em repostas no corpo. Segundo o consultor Luiz Fernando Garcia, que ensina empresários a superar crises financeiras, a angústia é um sentimento sem fim e sem formato e, portanto, difícil de ser tratado. Já a dor física tem prazo e, portanto, gera ansiedade e não angústia. "As expectativas da cura de um câncer, por exemplo, atenuam a angústia", diz.

A educadora Selma Torres, 58 anos, pensou em terapia depois que a filha Fabiana foi assassinada aos 25 anos por Mateus da Costa Meira, que descarregou uma metralhadora em uma sala de cinema em um shopping, em São Paulo, e matou três pessoas, em 1999. Como sentia dores no corpo após o crime, se submeteu a exames. Nenhum problema físico foi detectado. "Meu corpo somatizou", diz. A compra de um teclado fez a mente voltar a trabalhar a seu favor. "Tocar exigia atenção e me ajudou a melhorar." Sem perceber, Selma lançou mão da sublimação, mecanismo de defesa em que a dor fica reprimida no inconsciente, enquanto a energia é dirigida de forma positiva para a arte ou atividade social. "Sobrevivente é quem vê em uma experiência dessas a oportunidade para crescer", diz o psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos, ex-supervisor do serviço de psicoterapia do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo. Selma aparenta viver bem o papel. Passou por um período de luto que a deixou fechada e ainda guarda na gaveta do quarto o passaporte da filha assassinada. Mas agregou novos valores à vida: "Aprendi a considerar as diversas potencialidades das pessoas e respeitá-las do jeito que são. Vivo cada dia como se fosse o último."

A dor emocional de Selma é uma das maiores que alguém pode enfrentar: a perda de um filho. É como se a natureza humana agisse ao contrário. Além da morte (especialmente a trágica, que não se espera), traição, difamação, queda financeira e ser vítima de violência estão entre as piores dores. Há uma média de tempo para a tristeza profunda, ou luto, em determinadas situações (leia quadro). Do contrário, já se caracteriza o transtorno de estresse pós-traumático (Tept), que exige terapia e até medicação. O comerciante paulista Alencar Rocha Sobrinho, 41 anos, seqüestrado em São Paulo, em 1998, apresentava um grau elevado de Tept até dois anos atrás. "Em uma escala de zero a dez, eu diria dez", diz o psiquiatra Ferreira-Santos, que atendeu Alencar. Ele era incapaz de trabalhar, raciocinar e falar.

i79792.jpgO comerciante, que em cativeiro suplicou por comida e apanhou antes de fugir por um vitrô, passou a sofrer mudanças de humor repentinas. "Problema psicológico é doloroso porque você não sabe o que tem. Em um mesmo dia, eu sentia tristeza, angústia, medo e felicidade", diz. Com medo de sair de casa, desfez o casamento e começou a beber. Para quem não apresentava condições nem mesmo para dirigir a própria vida, Alencar, hoje, serve de exemplo. Casou-se novamente, construiu uma casa e teve um filho, Ramiro, hoje com um ano e oito meses. Vendedor autônomo, sai para trabalhar sem receio. "Ele aprendeu com a experiência. Em vez de agressivo, passou a ser assertivo ao dar sinais de que está caminhando para uma nova vida", diz Ferreira-Santos.

O quadro de Alencar antes do tratamento representa o extremo da dor emocional, que se configura em Tept: a pessoa revive com freqüência sentimentos como medo e angústia e sintomas como taquicardia e sudorese, que foram experimentados no trauma. Outro distúrbio que pode aparecer quando o luto se prolonga é a depressão. Em outubro, a polícia de Los Angeles (EUA) divulgou o suicídio de um desempregado de 45 anos que trabalhou em grandes empresas. Antes, ele matou a mulher, os três filhos e a sogra. A hipótese de depressão devido a dificuldades financeiras é a principal explicação. "É um alerta de quanto a importância do dinheiro pode acabar em trauma", diz o psicólogo Waldemar Magaldi, autor do livro Dinheiro, saúde e sagrado. Dono da importadora Komlog, Denisson de Freitas, 41 anos, conviveu com sentimento semelhante em 1999. Por conta da crise cambial, o volume de negócios dele diminuiu pela metade. "Me sentia falido. Pensava em quem demitiria e na casa e no carro dos quais teria de me desfazer", conta. O fantasma da falência foi vencido com o auxílio psicológico.

 

AMADURECIMENTO

 

Vítima de seqüestro, Alencar Rocha sofreu de transtorno de estresse pós-traumático. Com tratamento superou a doença, casou novamente e teve o filho Ramiro

 

 

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Por mais chocante que seja, porém, a dor emocional pode ser um recomeço. "Já vi pacientes que enfrentaram sofrimentos extremos, aproveitaram a situação para repensar a vida e se reaproximaram da família, dos amigos, foram atrás de sonhos", afirma o psiquiatra Elson Mota Moura, da Clínica Medicina do Comportamento, no Rio de Janeiro. Segundo ele, pesquisas indicam que pessoas que superam melhor as dores costumam ser perseverantes, dedicadas e têm capacidade de aprender com as dificuldades. Entender a experiência traumática foi o que fez a universitária Francine Favoretto, 22 anos, de Pompéia (SP), vencer a dor da difamação e a perda da identidade diante da opinião pública. Em abril de 2006, Francine teve supostas fotos suas nas quais mantinha relações sexuais com dois rapazes divulgadas na internet. Na faculdade, em Marília, 300 alunos se aglomeraram na porta da sala de aula da jovem para xingá-la. Saiu de lá escoltada pela polícia. Nada se provou. Ela diz que se tratava de uma montagem, os acusados pagaram cestas básicas e o assunto morreu. Hoje, a serenidade de Francine impressiona. "Esse episódio me ensinou a dar valor a quem me dá valor. Recebi apoio e amadureci", afirma. Ela cursa o último ano de direito e quer ser delegada.

A religião funcionou como um apoio importante. Francine passou a freqüentar a Seicho-no-ie, filosofia oriental que prega o perdão para a libertação dos sofrimentos. A educadora Selma se sente em paz depois de introduzida por um amigo no espiritismo. O tratamento médico também pode ser fundamental. "Infelizmente, ainda há quem ache que a mente não precisa ser tratada. É um erro que pode prejudicar toda uma vida", diz o psiquiatra Elson Mota Moura. A terapia cognitiva comportamental é a mais indicada nos casos de dores emocionais. Ela ensina a pessoa a repensar o problema junto com o terapeuta até que fique claro como a vida será dali em diante e o que se deve fazer para essa nova fase ser positiva. Medicamentos só devem ser empregados quando a terapia sozinha não dá resultado. Francine, Selma, Alencar e Denisson provam que a vida pode trazer muita dor. Mas que há caminhos para curar as feridas.

RECOMEÇO

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