São João da Boa Vista, município paulista ao nordeste do Estado, tem cerca de 70 mil habitantes e mais de 200 anos de história. Essa modorrenta cidade guarda um mistério. Valioso, registre-se, de US$ 35 milhões, e representado por dois clássicos da pintura renascentista – um Ticiano (escola italiana) e um Velásquez (escola espanhola), que teriam sido contrabandeados e vendidos na Suíça, com a ajuda de uma instituição bancária de Genebra. A história tem quase cinco anos, já rendeu um inquérito – inconcluso – na Delegacia de Prevenção e Repressão a Crimes Fazendários da Polícia Federal de São Paulo e envolve um respeitável personagem de São João, o industrial português Flávio Augusto do Canto. Ele seria o responsável pelo contrabando das obras e sua venda no Exterior.

De acordo com a denúncia levada à Polícia Federal pelo argentino Angel Enrique Garrido, antiquário e perito em arte, ele fora contatado por Deny General, funcionária do Banco Merryll Lynch, de São Paulo, para que conhecesse Flávio Augusto do Canto, que necessitava de avaliação de obras de arte. No encontro, Canto disse ao perito que era proprietário de dois quadros famosos, um atribuído a Ticiano Vecellio (1490-1576), expoente máximo da Escola Veneziana, e o outro a Diego Rodriguez da Silva y Velásquez (1599-1660), grande retratista da Escola Espanhola. A primeira obra é uma pintura a óleo que mede 0,85 m x 0,68 m, representa um cupido rodeado por três ninfas e intitula-se Deus e as virtudes do amor. A segunda é conhecida como Cristo Contrito. Também a óleo e medindo 0,86 m x 0,70 m, representa Cristo com a coroa de espinhos e as mãos atadas.

Canto apresentou, no entanto, apenas fotografias e transparências das referidas obras. Ele queria que Garrido conseguisse experts com credibilidade internacional para emitir laudos de autenticidade. Daí em diante, a história toma rumos de enredo de filme. Garrido disse a ISTOÉ que obteve os serviços de Tesarte Ferro, em Madri, e de Cesare Gelardini, em Roma. Dois renomados escritórios que emitiram pareceres após analisar apenas as fotos e transparências, ressalvando a necessidade de um exame pericial final sobre os próprios quadros. Quando foi cobrar seus honorários, Garrido soube que Canto havia retirado os dois quadros do Brasil levando-os clandestinamente para a Suíça em companhia de Obertal Mantovanelli Netto, representante no Brasil do Pictet & Cie Bankers, de Genebra (Suíça).

Fraude – Canto burlou não só as leis brasileiras, mas também as suíças, uma vez que declarou às autoridades aduaneiras locais que havia ingressado com apenas um quadro. Na verdade, relatou Garrido à Polícia Federal, os dois quadros ficaram sob custódia do banco suíço, que providenciou uma seguradora, a Mat Securitas Express S.A., que estipulou o valor do prêmio em 43 milhões de francos suíços. Para efetivar a apólice foi necessário o concurso de um perito para avaliação e autenticação das obras. As telas, ainda segundo Garrido, foram adquiridas pelo colecionador espanhol Juan Duro, com endereços em Nova York e Miami. Juan Duro teria pago US$ 20 milhões de um negócio fechado por US$ 35 milhões e teria depositado numa conta aberta pelo Pictet suíço para Canto no CitiBank de Nova York – agência da 399 Park Avenue, conta nº 109.38027, ABA, 021000089, 93253-ROTH –, transação não comunicada à Receita Federal brasileira.

A origem de um dos quadros foi traçada a partir da Argentina. Ambas as telas pertenceram à família de Héctor Miguel Corcione Ibañez, de Córdoba, na Argentina. Seu antepassado, o conde José Xavier de Anchorena e Zuñiga, foi um dos capitães vencedores do califa Alcama na batalha de Covadonga, em 718. Seu tataraneto Santiago de Anchorena (1670-1785) chegou à Argentina em 1690 e se casou com Maria de la Concepción Ortiz de Ocampo. Herdou várias telas, entre elas a de Velásquez. A obra ficou na família até 1865, quando um descendente imigrou para o Brasil. Em 1974, revela Ibañez, o óleo de Velásquez foi vendido a uma família brasileira. Quanto ao Ticiano, não se sabe como chegou ao Brasil.

ISTOÉ foi a São João falar com Flávio Augusto do Canto, sócio de uma fábrica de cabos de fibra óptica. Ele se recusou a falar. No Rio de Janeiro, o representante do Pictet & Cie Bankers foi evasivo, argumentando que o que tinha a dizer já foi dito em juízo. ISTOÉ conseguiu falar com Bruno Nussbauer, subdiretor do banco suíço para assuntos da América do Sul. Na melhor tradição do establishment bancário suíço, ele disse que não se lembrava do assunto. Finalmente, Flávio Augusto do Canto declarou à Polícia Federal que “os quadros pertenciam ao sr. Adécio Tenório Vasconcelos, de Brasília, que me havia pedido para vendê-las”. Canto disse que devolveu as telas quando tomou conhecimento de que “eram falsas”. Uma contradição, caso se leve em conta os documentos existentes sobre as expertises espanhola e italiana, bem como sobre a companhia que segurou os quadros e ainda sobre o relacionamento de Canto com o banco suíço.