Quem já foi a um consultório e teve a sensação de ter entrado no lugar errado? Seja pela rapidez ou pela frieza no atendimento, muitas vezes a impressão é essa. Foi assim que a vendedora paulista Larissa Takaeso, 23 anos, se sentiu há dois meses, após uma consulta com um clínico que durou dez minutos. “Ele perguntou qual era meu problema e se estava tomando medicamento. Sem tirar os olhos do computador, pediu para fazer exames e continuar com o remédio. Apenas isso”, lembra. Pasma, a vendedora deixou o consultório sem saber o provável diagnóstico. “Saí pior do que entrei”, completa Larissa, que tinha uma infecção urinária, descoberta mais tarde por outro especialista.

O caso é o retrato de uma prática comum nos atendimentos públicos de saúde e que vem ganhando espaço também nas clínicas particulares do Brasil, principalmente as que trabalham com planos de saúde. São consultas vapt-vupt, em que o profissional, na ânsia de atender um maior número possível de pessoas, exclui etapas de uma boa consulta. O resultado dessa correria não poderia ser outro. Cada vez mais insatisfeitos, pacientes estão reclamando da falta de atenção e de tempo dos especialistas. De janeiro de 2000 a junho deste ano, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo registrou 15.847 denúncias, entre elas muitas queixas por mau atendimento e erro médico. “O fato mais importante é que todas têm origem na má relação com os pacientes”, analisa Isaac Jorge Filho, presidente da entidade.

Avaliação – A má qualidade
da consulta pode interferir no
diagnóstico. Com tanta pressa, o
exame clínico acaba comprometido. São deixados de lado procedimentos como medição da pressão arterial e avaliação física. Também é abandonada a conversa com o paciente. “Observar o jeito da pessoa ao falar, a postura ao sentar, saber onde mora, trabalha e se pratica exercícios são informações que ajudam a fazer 70% dos diagnósticos. Os outros 30% vêm do exame físico. Mas isso é uma prática quase em desuso e enfraquece a relação médico-paciente”, lamenta o clínico Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica. Segundo ele, parte da culpa pelo desgaste dessa relação se deve às faculdades que priorizam a informação e não a formação dos profissionais. Isso significa um currículo tecnicista que valoriza mais os recursos de última geração do que o contato com o indivíduo. Ou seja, uma enxurrada de pedidos de exames complementares, mas pouco toque na primeira consulta. “A tecnologia tem de ser vista como recurso. Não pode ser mais importante do que o paciente”, pondera.

Carioca de 60 anos, a engenheira Margarida Lima passou por uma experiência em que os exames complementares se tornaram mais importantes do que ela própria. Em 2004, ela quebrou o pé e foi atendida por um ortopedista que lhe pediu uma radiografia sem sequer examinar a área lesada. Tampouco quis ouvi-la. A engenheira usou uma bota ortopédica e retornou para casa insegura pela falta de diálogo. Decidiu, então, passar por outro especialista para pedir orientação. Mas o procedimento adotado pelo médico se repetiu, com um agravante. “O primeiro me disse que poderia pôr o pé no chão, o segundo falou o contrário”, recorda-se. Quando teve alta, Margarida consultou mais um profissional porque queria participar de uma longa caminhada. Encontrou alguém disposto a conversar e ela fez o passeio desejado. Com segurança.

Um dos motivos para que histórias desse tipo se multipliquem é a necessidade que os médicos têm hoje de trabalhar em ritmos industriais. Com o descalabro do sistema público, não resta alternativa aos profissionais senão aderir a planos de saúde, que atendem 38 milhões de pessoas no País. Como os valores pagos por essas empresas são baixos – entre R$ 23 e R$ 33 por consulta –, os médicos entopem a agenda de clientes, que dificilmente recebem do profissional a dedicação merecida. A endocrinologista Maite Chimeno, do Rio de Janeiro, faz uma média de 28 atendimentos por dia, sendo apenas 3% particulares. Quando se trata de convênio, seus vencimentos são miseráveis R$ 29 pela consulta, contra R$ 90 vindos dos particulares. Apesar da imensa quantidade de gente que atende, a médica mal consegue pagar suas despesas. “As consultas duram, em média, 20 minutos. Fica bastante cansativo porque o atendimento é muito detalhado. Só consigo dar conta porque sou organizada”, assume.

Para Márcia Rosa de Araújo, do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, a raiz desse cenário está, de fato, na baixa remuneração da categoria pelas operadoras de saúde. “A situação é crítica. Ou o médico fecha o consultório ou aumenta o número de pacientes”, afirma. O presidente da Associação Brasileira de Medicina de Grupo, Arlindo de Almeida, admite que os honorários médicos foram achatados. Alega, no entanto, que isso se deve aos baixos reajustes das mensalidades dos planos. Por outro lado, ele se queixa do aumento do número de pedidos de exames, que nos últimos anos quase dobrou. “A formação do médico está deixando a desejar. O objetivo do exame é confirmar uma suspeita, mas agora os especialistas fazem pedidos para compor o diagnóstico”, diz.

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Qualidade – O problema vai além da falta de tempo e do excesso de exames complementares. Muitas vezes o paciente se sente tratado com descaso. Numa consulta com um cardiologista, a advogada Tereza Fratucci, de São Paulo, teve de insistir para que o médico solicitasse um teste de sangue. Ela tem taxas altas de colesterol. “Sem sequer me examinar ou questionar meus hábitos alimentares, ele dizia que bastava parar de comer que meu problema seria resolvido. Falava de modo rude e desinteressado. A contragosto, fez o pedido”, conta. Segundo Eleuses Vieira, presidente da Associação Médica Brasileira, esse comportamento é inadmissível. Ele acrescenta, porém, que boa parte dos médicos tem até quatro empregos para conseguir se manter. “Isso interfere no atendimento.” Vieira acredita que a situação só existe porque é favorecida pelo atual modelo de saúde. “Não há um sistema público de qualidade capaz de competir com o privado.”

No serviço público, a situação é caótica. Quem depende do SUS enfrenta filas de espera que podem durar dias ou meses. Não são poucos os que vivem esse drama. O Ministério da Saúde afirma que 80% da população – 145 milhões de brasileiros – tem o SUS como o único meio de chegar ao médico. É o que ocorre com a doméstica mato-grossense Cilene Lourenço, 35 anos, que tentava fazer um tratamento de urgência desde 2003, quando testes ginecológicos apontaram que estava com uma doença grave. “A médica não disse o que era, mas pediu para que procurasse um especialista”, lembra. Quatro meses depois, Cilene foi informada que havia uma suspeita de câncer de colo de útero. A partir daí, fez exames sucessivos porque os resultados levavam até dois meses para sair. “Quando chegava ao médico, ele dizia que o resultado estava velho e pedia novo exame. Nesse vai-e-vem, passei dois anos tomando chás e antibióticos por minha conta para aliviar as dores”, revela. Recentemente, com a ajuda de amigos, foi atendida por um médico particular e seu problema, uma infecção uterina, está sendo controlado.

Tanto no atendimento público como no privado, o desafio é manter-se atualizado sem abrir mão da sensibilidade e da capacidade de observar o paciente com atenção e até carinho. Essa é uma preocupação que tem corrido o mundo. Nos Estados Unidos, universidades estão incluindo disciplinas como filosofia e comunicação para ensinar o médico a ouvir seus pacientes. Por aqui, as iniciativas seguem o mesmo rumo. Faculdades se adaptam para redirecionar a formação médica. Uma estratégia é colocar os estudantes em contato com comunidades já no primeiro ano do curso. A idéia é fazer com que os futuros doutores conheçam melhor a população que estará sob seus cuidados. “Ter um profissional bem-formado resolve 80% dos problemas de saúde. Isso porque os casos mais prevalentes são detectados no primeiro contato do paciente com o médico”, explica Henry de Holanda, diretor da Escola de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Se a primeira impressão é de fato a que fica, é bom mesmo que os profissionais de saúde se empenhem em olhar mais para o paciente e menos para o relógio, lembrando-se que diante deles está um ser humano fragilizado.


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