Brasil

Favela sem traficantes
Presença da polícia no Morro Dona Marta expulsa o crime organizado e devolve o bairro à população

Gustavo de Almeida

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Os degraus da escada do Morro Dona Marta hoje só assustam pela quantidade: são cerca de 800, da rua São Clemente, uma das principais do bairro de Botafogo, na zona sul do Rio, até a Ladeira Mundo Novo, o topo da favela, de onde se tem uma vista deslumbrante da Lagoa Rodrigo de Freitas, do Corcovado e do Pão de Açúcar. O percurso foi feito pela equipe de ISTOÉ, parte a pé e parte de bondinho, na quarta-feira 3, com tranqüilidade. Esses mesmos degraus assustavam, até recentemente, por outros motivos: homens ostensivamente armados controlavam as bocas-de-fumo localizadas nessa favela, que já foi um dos principais postos de abastecimento dos consumidores de drogas das classes média e alta cariocas. Dez dias antes, repórter e fotógrafo teriam que pedir autorização aos traficantes ou escolta policial – em ambos os casos, nada garantiria que sairiam ilesos da visita. O motivo da tranqüilidade: o morro está ocupado permanentemente por 50 PMs – número que subirá para 120 no ano que vem. Graças a isso, a experiência de caminhar pela comunidade Dona Marta é quase um passeio turístico, com direito, inclusive, de se fotografar o que bem entender.
i80028.jpgSem esconder a surpresa, os moradores cumprimentam cordialmente os visitantes, embora ainda não estejam acostumados ao novo regime de paz. Mas crianças brincando nas ruelas é um sinal de mudança significativa numa comunidade habituada a encontrar cadáveres pelas vielas após tiroteios e conflitos entre traficantes e polícia. O bondinho passa por cinco pontos do morro. A maioria dos passageiros estranha: há agora um policial em cada estação para dar segurança à população. “A guerra aqui deixava muita gente morta, ferida. A polícia nunca se preocupou em preservar os moradores”, diz uma jovem de 19 anos acostumada a ouvir dos pais várias histórias de sangue.

“Agora é hora de se acostumar com o novo regime”, constata a moradora Érica. Ela, como quase todos os outros, não diz o sobrenome. Falar com jornalistas ainda não é seguro. Érica admite que os moradores estão em compasso de espera. “Todo mundo quer saber como as coisas vão ficar. E a creche? Vai virar mesmo posto de policiamento?” Vai. A ex-creche acabou se transformando numa base policial porque estava vazia. Nas paredes do prédio de dois andares e oito cômodos, há diversos furos feitos por balas de fuzis, todos tiros disparados por traficantes. Agora, a unidade abrigará a tropa de 120 policiais militares, comandados por uma mulher, a capitã Priscila Azevedo, 30 anos. Ela vai administrar essa base e mais dois postos, um no alto e outro no sopé do morro.
O presidente da Associação dos Moradores, José Mário Hilario, diz que, “por enquanto”, eles estão satisfeitos, mas esperam por complementos importantes: “Saúde, educação, cultura e esporte.” O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, pensa igual ao líder comunitário. “Vamos criar um tipo de policiamento com uma nova nomenclatura. Segurança pública não é somente ação policial. Precisamos que o Estado entre com os serviços”, afirma. Quem banca é o governador Sérgio Cabral: “Nossa intenção é criar uma ação permanente da polícia que possa garantir tranqüilidade à população do Dona Marta. Estamos fazendo muitos investimentos ali. Em alguns dias, estarei inaugurando novas residências, uma nova creche reformada e uma área esportiva.” Quando estava sob o domínio do tráfico e a favela entrava em guerra, os moradores tinham de obedecer ao toque de recolher. “Assumia um bando novo, todo mundo ia para dentro de casa até entender as novas regras”, diz um dos operários da Empresa de Obras Públicas do Estado (Emop), também morador. A comunidade Dona Marta é a primeira na qual o governo estadual adota o novo modelo de ocupação, desde a segunda- feira 1º. Os traficantes poderosos e truculentos fugiram para outras favelas,como o Chapéu Mangueira, no Leme, o próximo alvo da Secretaria de Segurança. A decisão foi tomada depois da madrugada da quinta-feira 4, quando seguidos conflitos entre traficantes de facções diferentes transformaram o morro em praça de guerra.
i80034.jpgAs mudanças coincidem com a ida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na mesma semana, ao Rio para lançar o programa Território de Paz, de combate à criminalidade, especialmente em favelas. O anúncio foi feito no Complexo do Alemão, um gigantesco conglomerado de favelas da zona norte, onde haverá policiamento comunitário com 600 homens distribuídos em 20 postos. O governo federal investirá R$ 50 milhões por meio do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania (Pronasci). A chegada da PM à favela significa mais do que apenas banir o tráfico. No Dona Marta, por exemplo, outras irregularidades estão sendo coibidas, como as máquinas caça-níqueis, já apreendidas, e o gatonet, nome dado à TV a cabo ilegal distribuída com sinal roubado, que rendia, por mês, cerca de R$ 20 mil à boca-defumo. Um pouco de normalidade na favela pode vir a ser o melhor presente de Natal para a comunidade.