Eram 19h50 da terça-feira 26, quando o senador Delcídio Amaral (PT-MS) anunciou: “Chegamos no limite.” Ele interrompeu a sessão da CPI dos Correios que durante nove horas ouvira Renilda de Souza – mulher do publicitário Marcos Valério. Havia três parlamentares inscritos para perguntar. Mas os limites de Renilda se extinguiam na proporção que sua vida particular se devassava diante da fúria dos inquisidores. Interrogações sobre seus sentimentos mais íntimos borbulhavam num espetáculo intimidatório que Kafka certamente adoraria descrever. Numa das cenas mais constrangedoras da CPI, o deputado Julio Redecker (PSDB-RS) pisoteou. “Sua mãe deve estar sofrendo muito e rezando pela senhora.” “Não, não está. Ela tem mal de Alzheimer”, respondeu Renilda. “A senhora usou dinheiro que deveria ser da população. Como tem coragem de olhar na cara dos próprios filhos?”, chutou Redecker, levando a depoente a um choro profundo. Nessa mistura, às vezes sórdida de público e privado, o próprio Marcos Valério, ao listar suas empresas para a CPI, lembrou, aos prantos, que uma delas, a JVN – que não chegou a ser aberta –, tinha as iniciais dos três filhos, inclusive de um que morreu de câncer aos seis anos.

Em tempos de escândalos, produção de dossiês em escala, CPIs se atropelando e reputações jogadas no mar de lama nacional, as casas de muitos brasileiros viraram cenários de dramas que não podem ser dimensionados por extratos bancários e de imagens tristes que não são captadas pelas câmeras de tevê. Por trás da lavagem de roupa suja na CPI dos Correios e de tantas outras investigações – CPI do PC, Escândalo dos Precatórios, Orçamento, das Bicicletas, Frangogate, Máfia do Sangue –, famílias têm sido dilaceradas. Denunciantes e denunciados compartilham aquele que talvez seja o preço mais caro cobrado pela faxina ética do País: filhos e filhas crescendo sob a marca da vergonha, do medo e até do abandono. Caso de Paulinho, hoje com 22 anos, e Ingrid, 24, filhos do ex-tesoureiro de Collor, PC Farias (assassinado em 1996), que desceram ao fundo do poço. Ou Ana Sophia, a caçula do ex-ministro da Saúde Alceni Guerra, vítima de uma professora maquiavélica. Ou ainda Christian, nove anos, neto do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), barrado no colégio por colegas que queriam cobrar dele uma versão escolar do mensalão. Filha do ex-presidente nacional do PT José Genoino, Miruna, 23 anos, escreveu para o pai uma carta-desabafo. São filhos do País dos escândalos que guardam seqüelas pelo resto de seus dias.

Normalmente, esses dramas familiares não são visíveis. Outras vezes são jogados na arena. ISTOÉ ouviu nas últimas semanas depoimentos de quem constitui a parte mais vulnerável desse mundo político-policial.

Pivô do escândalo dos Correios e da denúncia do mensalão – a mesada que seria paga a parlamentares pela direção do PT –, o deputado Roberto Jefferson não se furta a repetir – em conversas informais – os estragos que sua conturbada trajetória política vem causando à sua família. Quando era líder da tropa de choque de Collor, seu filho Robertinho, na época com 14 anos, recebeu “uma coça” e teve a mandíbula quebrada. Agora, na CPI dos Correios, outra fratura familiar, dessa vez com o neto. Primogênito de Cristiana Brasil, vereadora carioca e filha de Jefferson, Christian, nove anos, foi barrado no corredor do colégio Cruzeiro, no Rio de Janeiro, onde estuda, por alunos que deram a seguinte ordem: “Só passa aqui se pagar mensalão.” A agressão foi comunicada à direção da escola, que deu apoio ao garoto. “Isso não aconteceu uma vez, foram várias. E por mais que ele tenha o nosso apoio, o da terapia e o do colégio, ninguém pode impedir o sofrimento dele”, diz a mãe, também alvo de preconceito. “Na academia de ginástica, eu deixei de ser Cristiana e passei a ser a filha de Roberto Jefferson. ‘Amigos’ passaram a evitar nossa família, a desmarcar encontros, a não atender telefone”, conta.

Para o pediatra Leonardo Posternak, presidente do Instituto da Família, em São Paulo, filhos podem colocar “em xeque a figura idealizada de seus pais” ao vê-los envolvidos em escândalos. “Descobrem que o pai não é um super-herói.” Segundo Posternak, é difícil para a criança entender por que alguém vai deixar de brincar com ela por algo “que seu pai fez”. Mas, conselho de especialista: deve-se contar o que acontece, em vez de isolá-la “numa bolha de plástico”. O psicanalista Alberto Goldim enxerga no sentimento dos filhos uma metáfora equivalente ao sentimento de confusão e tristeza que invade a Nação. “Um líder, um presidente, é como um pai para a população. Quando a confiança é destruída, o sofrimento é parecido com o de filhos que perdem a referência paterna”, explica Goldim. Não é à toa que o País discute com passionalidade incomum se Luiz Inácio Lula da Silva sabia ou não da lama que chegou à sua ante-sala. Dentro de casa, Lula tem seus dilemas. O “pai” do País é também pai do biólogo Fábio Luís, 28 anos, que teve questionados os negócios de sua empresa, a produtora Gamecorp, com a Telemar.

Recortes de jornais – Hoje fora dos holofotes e com seus dramas esquecidos, Alceni Guerra viu dois filhos, crianças na época em que era ministro da Saúde do governo Collor e acusado de superfaturamento na compra de bicicletas, serem covardemente envolvidos no episódio. Ele teve sua inocência comprovada, porém as cicatrizes já sangravam. “Na festa do Dia dos Pais, Ana Sophia, então com cinco anos, preparou um presente para o pai, orientada por uma professora: um cartaz com recortes de jornais estampando acusações de corrupção contra mim. Vi minha filha desfilar com aquela coisa acintosa diante de um colégio lotado, com um sorriso de orelha a orelha, sem ter a mínima idéia do que estava fazendo. Receber um abraço no Dia dos Pais de minha filha com um cartaz me chamando de corrupto foi a pior coisa que sofri”, relata Guerra no livro A era do escândalo, de Mário Rosa. Já Guilherme, então com 12 anos, foi capa de jornais em foto que mostrava pai e filho sentados no meio-fio, ao lado das bicicletas que usavam num passeio no Parque da Cidade, em Brasília.

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O trauma acompanhou Guilherme por muitos anos. O mesmo aconteceu com Victor Camargo Pitta do Nascimento, filho do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta, pivô do escândalo dos precatórios. Aos 25 anos, sua família desmoronou quando a mãe, Nicéa, contou o que sabia a respeito do governo Paulo Maluf. Victor e Pitta se agrediam via imprensa e romperam. Recentemente, o filho resolveu procurar o pai. “Sofremos muito. Agora começamos a nos falar de novo. Eu tomei a iniciativa porque acho que o ofendi e que ele merece uma segunda chance.” Ver o pai ser destruído causou uma erosão interna no jovem, que parou de trabalhar e de estudar, e caiu em depressão. A irmã, Roberta, também não agüentou. Ela estudava direito na Faculdades Metropolitanas Unidas, em São Paulo e viu o episódio frangogate (superfaturamento na compra de frangos no governo de Paulo Maluf, do qual Pitta era secretário de Finanças) ser levado para uma aula. “A sala inteira olhava para ela. Roberta trancou a matrícula e se mudou do Brasil”, relembra Nicéa. Para evitar que sua filha Naína, oito anos, sofra traumas, a ex-secretária e testemunha Fernanda Karina Somaggio – que tem repetido que sua motivação é ajudar a criar “um Brasil melhor” – adota estratégias para protegê-la, como restringir seu contato com pessoas estranhas e manter distância das ruas, que causam certa solidão. Karina deve, portanto, pensar bem antes de aceitar o convite de uma revista masculina para posar nua, como têm comentado.

“Devolve meu sangue!” – Um exemplo bem-sucedido de filho que conseguiu sobreviver à fúria das denúncias é a modelo Ellen Jabour, namorada do ator
Rodrigo Santoro. Seu pai, o empresário Jaisler Jabour de Alvarenga, foi acusado,
no ano passado, de integrar a Máfia do Sangue, nome dado a fraudadores de medicamentos no Ministério da Saúde. Ellen só perdeu a fleuma uma vez. Segundo nota da coluna de Ancelmo Gois, em O Globo, ela estava num camarim do São
Paulo Fashion Week quando alguém gritou: “Devolve meu sangue!” A modelo retribuiu o desaforo e encerrou o caso.

Nem sempre, entretanto, o saldo é negativo. Filho de Eriberto, o motorista que desmontou o esquema PC Farias e foi peça-chave no impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, André Vinícius colheu bem mais elogios do que hostilidades. Na época, ele tinha cinco anos e não entendia o que acontecia. Sofria, apenas, porque os pais o levavam para dormir com os avós, por precaução. “Eu não gostava da noite porque me separava deles. Era triste”, relembra. Com o tempo, ele passou a ser cumprimentado pela atitude heróica do pai. “Tenho orgulho. Ele foi corajoso. Mexeu com gente importante e era a parte mais fraca. Normalmente, as pessoas falam dele de forma respeitosa.

Exceto um ‘seu pai é dedo-duro!’, dito de brincadeira, o resto é elogio.” Para Eriberto, o sofrimento da família foi grande, mas valeu a pena. “Recebi ameaças por telefone, tivemos proteção da Polícia Federal, mas a gente tentava passar certa normalidade para os filhos. Íamos para a pracinha e fazíamos de conta que não estava acontecendo nada”, relembra.

Do outro lado do mesmo caso, o saldo não é nada alegre para os descendentes de PC Farias. Paulinho, hoje com 22 anos, e Ingrid, 24, não levam a vida como outros jovens. Ela pouco sai e vive deprimida, segundo relatos de poucos amigos. Paulinho não dá um passo sem seguranças, mais de uma década depois dos escândalos. Como disse o ex-presidente da Câmara Ibsen Pinheiro, “quem escolhe o caminho da política sabe que está na chuva e se molhar é contingência. Mas e os que não foram à chuva e se molham também?” Apesar de inocente, Pinheiro foi cassado após acusação de envolvimento com a Máfia do Orçamento e teve sua história passada a limpo recentemente, mais de uma década depois. Com a autoridade de quem comeu o pão que o diabo amassou injustamente, ele diz que o mínimo que se pode fazer para tentar poupar a família, “a parte que mais sofre”, em momentos como os atuais é ter “comedimento”. Fica o conselho. Ficam as marcas.


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