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O autor americano Philip K. Dick (1928-1982) foi prolífico criador de ficções científicas, muitas delas adaptadas para o cinema. Escreveu 36 romances, e quatro deles  estão sendo lançados noBrasil, com novas traduções, pela Editora Aleph. Além do autobiográfico “Valis” e do futurista “Ubik”, integram o pacote dois clássicos publicados na década de 1960: “O Homem do Castelo Alto” e “Os Três Estigmas de Palmer Eldritch”. No primeiro, ele recria o mundo a partir da hipotética vitória nazista na Segunda Guerra e no segundo, imagina o planeta superaquecido e inabitável.

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Leia trecho do livro "Os Três Estigmas de Palmer Eldritch", de Philip K. Dick

Com a cabeça doendo de forma anormal, Barney Mayerson acordou e se viu num quarto desconhecido num prédio de condaptos desconhecido. Ao seu lado, com as cobertas até os ombros nus e macios, dormia uma garota nada familiar, respirando levemente pela boca; o cabelo, uma confusão branca feito algodão.
Aposto que estou atrasado para o trabalho, disse a si mesmo. Saiu da cama, cambaleou e parou com os olhos fechados, para evitar o enjoo. Até onde sabia, estava a algumas horas de carro do escritório. Talvez não estivesse nem nos Estados Unidos. Mas estava na Terra. A gravidade que o fizera oscilar era familiar e normal.
E ali na sala ao lado, perto do sofá, avistou uma mala já bem conhecida, a do seu psiquiatra, o dr. Smile.
Descalço, andou até a sala de estar e sentou-se ao lado da mala. Abriu-a, apertou alguns dispositivos e ligou o dr. Smile. Os medidores começaram a registrar dados, e o mecanismo emitiu um zumbido.
– Onde estou? – Barney perguntou. – E qual a distância até Nova York?
Essa era a questão principal. Viu agora um relógio na parede da cozinha do condapto. Marcava 7h30. Nem um pouco tarde.
O mecanismo, que era a extensão portátil do dr. Smile, conectado por microrrelê ao computador propriamente dito localizado 10 Os Três Estigmas de Palmer Eldritch no subsolo do prédio de condaptos do próprio Barney em Nova York, o Renome 33, declarou em tom metálico:
– Ah, Sr. Bayerson.
– Mayerson – corrigiu Barney, alisando o cabelo com dedos trêmulos. – O que se lembra de ontem à noite? – Agora notou, com intensa aversão física, garrafas meio vazias de bourbon e água com gás, limões, cervejas amargas e formas de gelo no aparador da cozinha. – Quem é essa garota?
Dr. Smile disse:
– A garota na cama é a srta. Rondinella Fugate. Roni, como pediu que você a chamasse.
Soava vagamente familiar e, estranhamente, de alguma forma, relacionada ao seu trabalho.
– Ouça – ia dizendo à mala, mas, no quarto, a garota começou a se movimentar. No mesmo instante, ele desligou o dr. Smile e se levantou, sentindo-se vulnerável e constrangido, vestindo apenas a cueca.
– Está de pé? – a garota perguntou, sonolenta. Remexeu-se e fi cou sentada de frente para ele. Muito bonita, concluiu Barney, com lindos olhos grandes.
– Que horas são? Já fez o café?
Ele marchou até a cozinha e acionou o fogão, que começou a esquentar a água da cafeteira. Enquanto isso, ouviu uma porta fechar; ela havia entrado no banheiro. Barulho de água. Roni estava tomando banho.
Novamente na sala, ele voltou a ligar o dr. Smile.
– O que ela tem a ver com a Ambientes P. I.? – perguntou.
– A srta. Fugate é sua nova assistente. Chegou ontem da China Popular, onde trabalhou para a Ambientes P. I. como consultora de Pré-Moda daquela região. No entanto, a srta. Fugate, ainda que talentosa, é muito inexperiente, e o sr. Bulero decidiu que um curtoperíodo como sua assistente… Eu ia dizer “sob sua supervisão”, mas isso poderia ser mal interpretado, uma vez que…
– Ótimo – disse Barney. Entrou no quarto, encontrou suas roupas – tinham sido deixadas, sem dúvida por ele, numa pilha no chão – e começou a se vestir com cuidado. Ainda se sentia péssimo, e mantinha o esforço para não ceder e fi car extremamente enjoado.
– Está certo – disse ao dr. Smile ao voltar para a sala, abotoando a camisa. – Eu me lembro do memorando de sexta-feira sobre a srta. Fugate. O talento dela é inconstante. Fez a escolha errada naquele item da Janela Panorâmica da Guerra Civil dos Estados Unidos…imagina, achou que seria um sucesso estrondoso na China Popular. – Ele riu.
Ela abriu uma fresta na porta do banheiro. Ele viu Roni de relance,rosada, suave e limpa, secando-se.
– Me chamou, querido?
– Não – ele disse. – Estava falando com o meu médico.
– Todo mundo comete erros – disse o dr. Smile, um pouco vagamente.
Barney disse:
– Como foi que eu e ela acabamos… – ele apontou para o quarto.
– Depois de tão pouco tempo?
– Química – disse o dr. Smile.
– Ah, vá.
– Bom, ambos são precogs. Vocês previram que iam acabar se dando bem, envolvendo-se eroticamente. Então, depois de alguns drinques, os dois concluíram: para que esperar? “A vida é curta, a arte é…”– A mala parou de falar porque Roni Frugate apareceu, nua, passou por perto dela, e Barney voltou mais uma vez para o quarto. Seu corpo era esguio, ereto, um porte realmente soberbo, ele notou, seios pequenos, empinados, com mamilos menores que duas ervilhas cor-de-rosa. Ou melhor, duas pérolas rosadas, corrigiu- se.
Roni Fugate disse:
– Era para ter perguntado ontem à noite: por que você está consultando um psiquiatra? E, meu Deus, você o carrega para todo lugar, não o largou nem uma vez… e o deixou ligado direto até… – Ela ergueu uma sobrancelha e o encarou com um olhar penetrante.
– Pelo menos eu desliguei nessa hora – observou Barney.
– Você me acha bonita? – Ficando na ponta dos pés, ela se esticou toda de uma vez, estendeu os braços acima da cabeça e, para o assombro dele, começou a fazer uma série intensa de exercícios, pulando e saltando, os seios balançando.
– Certamente – ele murmurou, perplexo.
– Eu pesaria uma tonelada – disse Roni Fugate, ofegante – se não fi zesse esses exercícios da Ala Militar da ONU todas as manhãs. Vá servir o café, sim, querido?
Barney disse:
– Você é mesmo a minha nova assistente na Ambientes P. I.?
– Sim, claro. Quer dizer que não se lembra? Mas imagino que você seja como muitos precogs de alto nível: vê o futuro tão bem que tem apenas uma vaga lembrança do passado. Você se lembra exatamente de que a respeito de ontem à noite? – Ela fez uma pausa nos exercícios, arfando.
– Ah – ele disse vagamente –, acho que de tudo.
– Ouça. O único motivo para você andar carregando um psiquiatra por aí é que deve ter recebido sua notifi cação de recrutamento. Certo?
Após uma pausa, ele fez que sim com a cabeça. Disso ele se lembrava. O envelope verde e azul familiar havia chegado uma semana atrás. Na próxima quarta-feira, ele faria o exame mental no hospital militar da ONU no Bronx.
– Ele ajudou? Ele… – ela apontou para a mala – …te deixou louco o sufi ciente?
Voltando-se para a extensão portátil do dr. Smile, Barney disse:
– Deixou?
A mala respondeu:
– Infelizmente, você ainda está bastante viável, sr. Mayerson. É capaz de lidar com dez freuds de estresse. Sinto muito. Mas ainda temos alguns dias, acabamos de começar.
Roni Fugate foi ao quarto, pegou a calcinha e começou a vesti-la.
– Pense bem – ela disse, refletindo. – Se for convocado, sr. Mayerson, e enviado para as colônias… talvez eu fique com o seu emprego. – Ela sorriu, mostrando dentes alinhados, magníficos.
Era uma possibilidade deprimente, e a habilidade de precog dele não o ajudou: a consequência apresentava-se de modo apropriado, em equilíbrio perfeito nas escalas de causa e efeito resultantes.
– Você não dá conta do meu emprego – ele disse. – Não conseguiu dar conta dele nem na China Popular, que é uma situação relativamente simples em termos de separação de pré-elementos. – Mas algum dia, ela conseguiria. Sem dificuldade, ele previu isso. Era jovem e transbordava talento nato: tudo o que precisava para se igualar a ele, e ele era o melhor no ramo, eram alguns anos de experiência. Foi ficando completamente desperto à medida que tomava consciência da própria situação. Tinha boas chances de ser convocado, e mesmo se não fosse, Roni Fugate poderia muito bem roubar seu ótimo e desejável emprego, o qual ele havia conquistado gradualmente, progredindo ao longo de um período de treze anos.
Solução peculiar para uma situação tão sinistra, ter ido para a cama com ela. Ele se perguntou como havia chegado a isso.
Curvado sobre a mala, disse em voz baixa para o dr. Smile:
– Gostaria que me dissesse por que diabos, com tudo tão complicado, eu decidi…
– Posso responder essa – Roni Fugate disse do quarto. Havia colocado um suéter verde claro, um tanto justo, e o abotoava diante do espelho da sua penteadeira. – Você me informou ontem à noite, depois do seu quinto bourbon com água. Você disse… – ela fez uma pausa, os olhos faiscantes – … é deselegante. O que você disse foi o seguinte: “Se não pode com eles, junte-se a eles”. Só que o verbo que usou, lamento dizer, não foi “juntar”.
– Hmm – Barney disse e foi para a cozinha servir-se de café. De qualquer jeito, não estava longe de Nova York. Era óbvio que, se a srta. Fugate era uma colega da Ambientes P. I., ele estava a uma distância razoável do trabalho. Eles poderiam ir juntos. Fascinante. Será que o chefe, Leo Bulero, aprovaria se soubesse? Haveria alguma política da empresa quanto a funcionários dormindo juntos? Havia regras sobre quase todas as outras coisas… mas escapava à sua compreensão como um homem que passava a vida nas praias turísticas da Antártida ou nas clínicas de Terapia E da Alemanha conseguia encontrar tempo para inventar dogmas para todo tipo de assunto.
Algum dia, disse a si mesmo, vou viver como Leo Bulero, em vez de fi car preso na cidade de Nova York num calor de 80 graus…
Abaixo dele, sentiu uma pulsação, o chão tremeu. O sistema de resfriamento do prédio havia sido ativado. O dia começou.
Do outro lado da janela da cozinha, o sol quente e hostil tomou forma atrás dos outros prédios de condaptos avistáveis. Fechou os olhos contra a luz. Seria mais um dia escaldante, tudo bem, provavelmente chegando à marca de 20 wagners. Não precisava ser um precog para prever isso.

 

Leia trecho do livro "O Homem do Castelo Alto", de Philip K. Dick

Fazia uma semana que o sr. R. Childan aguardava ansioso a correspondência. Mas a valiosa encomenda proveniente dos Estados das Montanhas Rochosas ainda não havia chegado. Quando ele abriu a loja na manhã de sexta e viu apenas cartas no chão, perto da fenda para a correspondência, pensou: um freguês vai ficar zangado hoje.
Depois de se servir de uma xícara de chá instantâneo da máquina automática fixada na parede, apanhou uma vassoura e começou a varrer o chão; em pouco tempo, a frente da American Artistic Handcrafts Inc. estava pronta para o dia, limpinha, com a caixa registradora cheia de troco, um vaso fresco de cravos-de-defunto e o rádio tocando música de fundo. Lá fora, na calçada, passavam homens de negócios apressados a caminho de seus escritórios na Rua Montgomery. Ao longe, um bonde passava; Childan parou para vê-lo passar com prazer. Mulheres com seus vestidos de seda longos e coloridos… isso ele também observou. Então o telefone tocou. Virou-se para atender.
– Sim – disse uma voz familiar do outro lado. O coração de Childan gelou. – É o sr. Tagomi quem está falando. O meu cartaz de alistamento da Guerra Civil Americana já chegou, senhor? Por favor, lembre-se: o senhor prometeu que ele chegaria na semana passada – a voz: exigente, rápida, com polidez mínima, que por pouco não se mantinha dentro do código. – Não lhe dei um depósito, sr. Childan, com essa especifi cação? É para presente, o senhor sabia? Eu havia explicado isso. Um cliente.
– Extensas investigações – Childan começou – que fiz à minha custa, sr. Tagomi, referentes à encomenda prometida que, como o senhor sabe, tem origem fora desta região e é, portanto…
Mas Tagomi cortou: – Então ainda não chegou.
– Não, sr. Tagomi.
Uma pausa gélida.
– Não posso esperar mais – disse Tagomi.
– Não, senhor. – Childan fi cou olhando melancólico, pela vitrine da loja, o dia quente brilhante e os prédios comerciais de São Francisco.
– Então, um substituto. O que recomenda, sr. Childan?
Tagomi pronunciou o nome errado deliberadamente; era um insulto dentro do código que fez as orelhas de Childan pegarem fogo. Hierarquia, a terrível mortifi cação da situação que os relacionava. As aspirações, os medos e os tormentos de Robert Childan vieram à superfície e ficaram expostos, inundando-o, paralisando sua língua. Ele gaguejou, a mão grudando pegajosa no telefone. O ar de sua loja cheirava a cravos-de-defunto; a música continuava tocando, mas ele sentia como se estivesse afundando em algum mar distante.
– Bem… – ele conseguiu balbuciar. – Batedeira de manteiga. Sorveteira, circa 1900. – Sua mente se recusava a pensar. Justo quando a gente se esquece; justo quando a gente se engana. Ele tinha trinta e oito anos de idade e se lembrava dos dias anteriores à guerra, os outros tempos. Franklin D. Roosevelt e a Feira Mundial; o mundo antigo e melhor. – Será que eu poderia levar alguns objetos interessantes ao seu escritório? – murmurou.
Marcaram uma reunião para as duas da tarde. Preciso fechar a loja, pensou ao desligar. Não tinha escolha. Era preciso manter a boa vontade desse tipo de cliente; os negócios dependiam deles.
Ali em pé, ainda tremendo, percebeu que alguém – um casal – havia entrado na loja. Um rapaz e uma moça, os dois bonitos e bem vestidos. Ideais. Acalmou-se e caminhou profissionalmente, sem pressa, na direção deles, sorrindo. Estavam debruçados, examinando o mostruário no balcão e tinham escolhido um bonito cinzeiro. Casados, ele imaginou. Moram a Cidade das Neblinas Tortuosas, os novos apartamentos exclusivos no Skyline, com vista para Belmont.
– Olá – disse, e se sentiu melhor. Eles sorriram para ele sem qualquer superioridade, apenas com gentileza. Seu mostruário – que era realmente o que havia de melhor no gênero ali na Costa – tinha causado boa impressão. Ele percebeu isso e ficou grato. Eles entenderam.
– São mesmo peças excelentes, senhor – disse o jovem. Childan curvou-se espontaneamente.
Os olhos dos dois, aquecidos não só pelo contato humano, mas pelo prazer comum proporcionado pelos objetos de arte que ele vendia, por seus gostos e satisfações mútuos, não desgrudavam dos dele; agradeciam-lhe por ter coisas como aquela, que eles podiam ver, tocar, examinar, manusear talvez, mesmo sem comprar. Sim, pensou, eles sabem em que espécie de loja estão; aqui não há bugigangas para turista, placas de sequoia onde se lê Muir Woods, Marin County, EAP (Estados Americanos do Pacífico), coisinhas, anéis para moças ou cartões-postais com a vista da Ponte. Especialmente os olhos da moça, grandes, escuros. Como seria fácil, pensou Childan, me apaixonar por uma garota assim. Mas como seria trágica, então, minha vida; como se já não estivesse bastante ruim. Esses cabelos pretos estilosos, as unhas pintadas, as orelhas furadas para os longos brincos de metal feitos à mão.
– Seus brincos – murmurou. – Adquiridos aqui, talvez?
– Não – ela respondeu. – Na minha terra natal.
Childan balançou negativamente a cabeça. Nada de arte americana contemporânea; apenas o passado poderia estar representado ali, numa loja como a dele. – Vão fi car muito tempo aqui? – ele perguntou. – Na nossa São Francisco?
– Estou aqui por tempo indeterminado – disse o homem. – Trabalho na Comissão de Inquérito para Planejamento do Padrão de Vida das Áreas com Problemas de Desenvolvimento. Seu orgulho era evidente. Não era militar. Não era um daqueles recrutas provincianos que viviam mascando chiclete, com suas caras gananciosas de camponeses, andando de um lado para outro na Rua Market, boquiabertos diante das casas de shows eróticos, dos cinemas pornôs, dos estandes de tiro ao alvo, das casas noturnas baratas com fotos de louras de meia-idade apertando os bicos dos seios com dedos enrugados, um sorriso debochado nos lábios… os antros de jazz, que formavam a maior parte da baixa São Francisco, frágeis barracos de zinco e de tábuas que surgiram das ruínas antes mesmo que a última bomba caísse. Não: aquele jovem era da elite. Culto, educado, ainda mais que o sr. Tagomi, que, afi nal de contas, era um alto funcionário, com o cargo de Adido Comercial da Costa do Pacífi co. Tagomi era um velho. Sua formação era do tempo do Gabinete de Guerra.
– Desejariam objetos de arte étnica tradicional americana para presente? – perguntou Childan. – Ou quem sabe para decorar seu novo apartamento aqui? Se fosse esta última hipótese… – Seu coração começou a bater mais rápido.
– Adivinhou – disse a moça. – Estamos começando a decorá-lo. Ainda não nos decidimos ao certo. Acha que poderia nos ajudar?
– Poderia passar em seu apartamento, sim – disse Childan. – Levarei várias malas e lá, no ambiente, posso fazer sugestões à sua conveniência. Essa é, claro, nossa especialidade. – Baixou os olhos para esconder sua expectativa. Isso poderia lhe render milhares de dólares. – Estou para receber uma mesa da Nova Inglaterra, de bordo, toda de madeira de encaixe, sem pregos. De imensa beleza e valor. E um espelho da época da Guerra de 1812. E também arte aborígene: um grupo de tapetes de pelo de cabra com tintura vegetal.
– Pessoalmente – disse o homem –, prefi ro a arte das cidades.
– Pois não – Childan disse ansioso. – Escute, senhor. Tenho um mural do período dos correios WPA, original, feito de madeira, em quatro partes, retratando Horace Greeley. Item de colecionador, de valor inestimável.
– Ah! – disse o homem, seus olhos escuros reluzindo.
– E uma Victrola de 1920 transformada em bar.
– Ah!
– E, senhor, escute: um retrato emoldurado e autografado de Jean Harlow.
O homem arregalou os olhos.
– Vamos marcar uma hora? – perguntou Childan, aproveitando aquele instante psicológico favorável. Tirou do bolso interno do paletó a caneta e o bloco de notas. – Vou anotar seus nomes e endereço, senhor, senhora.
Depois, quando o casal saiu da loja, Childan fi cou de pé, mãos nas costas, olhando a rua. Alegria. Se todos os dias fossem assim…Mas o sucesso de sua loja era mais do que negócios. Era a oportunidade de conhecer socialmente um jovem casal japonês, na base de uma aceitação dele como homem mais do que como um ianque ou, na melhor das hipóteses, como um comerciante de objetos artísticos. Sim, esses jovens da nova geração, que não se lembravam dos dias de antes da guerra, nem da própria guerra – eles eram a esperança do mundo. Diferenças de posição não signifi cavam nada para eles.
Isso vai acabar, pensou Childan. Um dia. A própria ideia de posição. Não mais governados e governantes, mas gente.
E, no entanto, tremia de medo ao se imaginar batendo à porta deles. Examinou suas notações. Os Kasoura. Se fosse recebido, sem dúvida lhe ofereceriam chá. Faria tudo corretamente? Saberia como agir e falar no momento exa to? Ou iria se desgraçar, como um animal, com algum fora terrível?
O nome dela era Betty. Quanta compreensão em seu rosto, ele pensou. Os olhos delicados, sensíveis. Certamente, mesmo naquele pouco tempo na loja, percebera, ainda que num vislumbre, suas esperanças e derrotas.
Suas esperanças: de repente fi cou tonto. Que aspirações eram essas que ele tinha, que beiravam a loucura, se não o suicídio? Mas não eram desconhecidas as relações entre japoneses e ianques, embora geralmente fossem entre homens japoneses e mulheres ianques. Isso… tremeu só de pensar. E ela era casada. Afastou da cabeça esse desfi le de pensamentos involuntários e começou a abrir a correspondência matinal com toda a atenção.
Descobriu que suas mãos ainda estavam tremendo. E foi então que se lembrou do encontro com o sr. Tagomi às duas. Pensando nisso, suas mãos deixaram de tremer e seu nervosismo transformou-se em determinação. Preciso encontrar alguma coisa aceitável, disse a si próprio. Onde? E como? O quê? Um telefonema. Fontes. Habilidade comercial. Desenterrar um Ford 1929 totalmente restaurado, com capota de tecido (preto). Uma grande jogada para manter a clientela para sempre. Um avião trimotor do correio aéreo, modelo original, encontrado num celeiro no Alabama etc. Apresentar a cabeça mumificada do sr. B. Bill, incluindo os cabelos brancos esvoaçantes; sensacional objeto americano. Firmar minha reputação nos mais altos círculos de connoisseurs do Pacífi co, incluindo o arquipélago nipônico.
Para se inspirar, acendeu um cigarro de maconha, da excelente marca Terra dos Sonhos.