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PASSADO
Marina (acima) costumava lavar os jeans enlameados de Heimar (à esq.),
primogênito de Dagmar e dona Teresinha (abaixo)
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Meados da década de 70. Dona Teresinha da Rocha Lopes, casada com um professor de geografia e mãe de oito filhos, andava um tanto atribulada com as tarefas domésticas. Precisava, urgente, de uma empregada. Certo dia, soube por intermédio de uma cunhada que uma adolescente recém-chegada do interior do Estado procurava trabalho na capital acriana. Apesar do orçamento apertado e da casa pequena, decidiu admiti-la. Marina Silva – esguia, pele parda e bastante calada – chegou num longo e rodado vestido de chita. Viera do seringal Bagaço, a 70 quilômetros de Rio Branco, onde vivia cortando seringa, plantando roçados, caçando e pescando para ajudar no sustento dos irmãos. Tinha 16 anos. Era a primeira vez que dava expediente em uma casa de família. “Marina não sabia fazer nada, porque os costumes do seringal eram muito diferentes dos da cidade”, lembra Solimar, 58 anos, a mais velha das filhas de dona Teresinha e do educador Dagmar de Oliveira Lopes. “Mamãe tinha uma paciência de Jó. Ensinou Marina a fazer tudo: arroz, feijão, bife.”

Marina morou durante mais de um ano na residência dos Lopes. Além de aprender a lida na cozinha, gastava horas lavando e passando roupas. Heimar, o primogênito da família, era o que mais exigia dos braços enxutos da moça. “Eu era técnico agrícola e ficava dias embrenhado nas matas fazendo vistorias. Chovia muito, e eu voltava com as calças jeans, daquelas bem rústicas, cheias de lama”, conta. Não havia água encanada na casa e, muito menos, máquina de lavar. Marina retirava água da cisterna e usava barras inteiras de sabão para eliminar toda a sujeira. Na hora de engomar e passar as vestimentas, era outro tormento. Ferro elétrico era um luxo de que a família também não dispunha. Marina usava um a carvão. “Era uma época de muita dificuldade. Mas ela não reclamava de nada”, afirma Heimar, 59 anos. “Encontrei Marina algumas vezes depois que ela entrou para a política. Ela sempre lembra que lavou muita roupa minha. Onde me vê, me abraça, me cheira, é aquela amizade.”

Na adolescência, a candidata do PV à presidência da república trabalhou como empregada doméstica da família Lopes. Lavava, passava, cozinhava. Nas horas vagas, montava altares com santinhos de papel, cobria a cabeça com véu e rezava ajoelhada

Quando Marina chegou a Rio Branco, ainda analfabeta, ninguém imaginava que aquela menina da floresta – que sofrera com moléstias graves, como hepatite e malária, e chegou a ser desenganada pelos médicos – pudesse ir tão longe. Marina foi professora, líder estudantil e sindical, vereadora, deputada estadual, senadora e ministra do Meio Ambiente. Na quinta-feira 10, o Partido Verde oficializou a candidatura dela à Presidência da República. “Espero que no dia 1º de janeiro do ano que vem a gente possa ter a primeira mulher negra presidente do Brasil”, disse Marina em seu discurso. “Sei bem de mim e do meu velho. Vamos votar nela”, alegra-se dona Teresinha, 78 anos. Embora o voto não seja obrigatório para quem tem mais de 70 anos, dona Teresinha e o marido, Dagmar, aos 81 e preso numa cadeira de rodas, fazem questão de ir às urnas.

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“Marina era muito amiga da minha filha Silene. As duas enchiam a casa de santinhos de papel e iam rezar. Queriam ser freiras”, relata dona Teresinha. Elas costumavam montar altares com panos brancos, cobrir a cabeça com véu e orar ajoelhadas. Naquela época, Marina era católica. Atualmente, é evangélica. Silene não acompanhou todo o progresso da amiga e o seu desejo de se tornar freira não vingou. Ela morreu anos atrás em decorrência de uma cirurgia mal-sucedida. Marina chegou a morar na Casa Madre Elisa, um pré-noviciado, depois de deixar a vida de doméstica. Mas logo se convenceu de que a sua verdadeira vocação não era a religiosa.

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Das seis meninas de dona Teresinha e seu Dagmar, Silene é lembrada como a mais alegre e extrovertida. O comportamento oposto ao de Marina, no entanto, não impediu que as duas se tornassem amigas. Como não havia camas suficientes para todo mundo, Silene dividia a sua com Marina. Quase toda a família dormia no mesmo quarto – o único da modesta casa de madeira suspensa sobre palafitas. Naquele tempo, muitas das residências da capital acriana seguiam o padrão arquitetônico das habitações erguidas sobre a água. “Eu costumava armar uma rede na cozinha para dormir”, recorda-se Heimar. A cozinha, aliás, era um dos ambientes em que os Lopes – e Marina – se reuniam para ouvir os “causos” de dona Teresinha. Os filhos se espalhavam pelos bancos de madeira, ao redor da mesa, ou pelo chão. “A gente não tinha tevê para se distrair”, diz Solimar. “Mamãe foi criada sem mãe, num colégio interno, e tinha muitas histórias para contar. Falava da infância dela, do namoro com o papai, de chapeuzinho vermelho. Marina participava de tudo isso junto com a gente”.

Sob o teto dos Lopes, Marina encontrou tempo para os estudos. Em apenas 15 dias, foi alfabetizada. “Ela vivia lendo”, afirma D’Esberard, 47 anos, um dos oito filhos. Marina botava os cadernos sobre a mesa da cozinha e passava horas sob a luz de uma lamparina fazendo os deveres de casa. A energia elétrica era racionada. Em geral, faltava luz dia sim, dia não. Marina não teve muita dificuldade com as letras. Com os números, foi um pouco diferente. “Como eu já tinha concluído o científico, às vezes, ela me pedia explicações de matemática. Fui eu que ensinei raiz quadrada para ela”, afirma João Gomes de Moraes Filho, 59 anos, marido de Solimar. “Marina costumava me chamar de ‘seu Juca’, inclusive na faculdade. Nos formamos no mesmo ano. Mas ela estudou história e eu fiz geografia.”

A casa de madeira onde Marina trabalhou como doméstica, no bairro do Bosque, não existe mais. Deu lugar a um imóvel maior, mais confortável, de alvenaria. Dona Teresinha e seu Dagmar ainda vivem ali, com um dos netos. A rua também melhorou. Foi asfaltada há pouco tempo – uma das melhorias que a construção de uma lanchonete da rede de fast-food Bob’s atraiu à região. Quase toda a família Lopes está nas redondezas. D’Esberard, advogado criminal e funcionário administrativo da Universidade Federal do Acre, mora num bairro próximo com a mulher e as três filhas. Solimar é vizinha dos pais. Todos se lembram, com carinho, de Marina. “Eu era molecote e costumava chatear muito a Marina. Pegava no pé dela, fazia barulho, não a deixava dormir direito”, conta D’Esberard. “Mas ela não brigava comigo. Só dizia para a minha irmã que eu era muito levado.” Na família Lopes, mesmo quem simpatiza com outros candidatos se sente impelido a votar em Marina. É o caso de D’Esberard: “Eu apoio a Dilma. Mas o meu voto é da Marina.”


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