Um dos descobridores do vírus da Aids, cientistadiz que as autoridades de Nova York erraram aoanunciar a existência de um super HIV

Uma das pedras fundamentais do pioneirismo, da inovação, é a coragem. O cientista Robert Gallo é um autêntico pioneiro inovador. Este americano de 68 anos, diretor do Instituto de Virologia Humana e da Divisão de Ciência Básica da Universidade de Maryland, é reconhecido por ter co-descoberto, em 1984, o HIV – o vírus causador da Aids –, feito que divide com o francês Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, de Paris. Na segunda-feira 18, Gallo será a estrela do fórum Aids, as Novas Descobertas e o Modelo Brasileiro de Assistência, realizado pela Seminários Três Editorial, da Editora Três. O evento acontecerá no Hotel Renaissance, em São Paulo, e contará também com a participação do novo ministro da Saúde, Saraiva Felipe.

Antes de sua co-descoberta, em 1974 o cientista já havia revelado a existência de outro vírus mortal, este causador de um dos tipos de leucemia, ao qual batizou de “HTLV”. Com esse achado, Gallo demonstrou que certas formas de câncer também poderiam ter origem virológica. Aqueles que hoje em dia recebem transfusões de sangue, ou fazem testes de HIV, podem agradecer a este pesquisador – que teve seu interesse pela ciência e pela medicina despertado ainda na adolescência, depois da morte da irmã de seis anos, vítima de leucemia – pela criação dos métodos para detectar contaminações.

Este currículo já bastaria para colocar Gallo, autor de mais de 1,1 mil publicações científicas, na galeria dos pioneiros. Mas, se há ainda alguma dúvida sobre esta
sua condição, basta que se note sua coragem, elevada ao ponto de ebulição. Na entrevista a seguir, o cientista exibe doses reforçadas desta característica. Por exemplo: ao bombardear sem subterfúgios as teorias de um colega seu, o idolatrado David Ho, diretor do Aaron Diamond Aids Research Center, de Nova York, sobre
um misterioso caso de infecção por HIV, ocorrido recentemente na metrópole americana, que ficou conhecido como “O Homem de Nova York”. Na ocasião, foi divulgado tratar-se de um caso de uma espécie de supervírus, resistente às drogas. Gallo, porém, é inclemente. “O chamado Homem de Nova York é uma bobagem.
É apenas um golpe publicitário incentivado por David Ho. O que, devo acrescentar, acontece periodicamente. Esta história nunca deveria ter ido adiante. O pessoal
da saúde pública da cidade entrou em pânico e fez muito barulho na imprensa
sobre algo que não existia”, afirma.

O próprio Gallo recebeu, e ainda recebe, chumbo grosso contra si. E não poderia ser diferente, já que outro pilar a sustentar as inovações é o da controvérsia. Mas depois de 30 anos no front da guerra contra os vírus, especialmente nas sangrentas batalhas contra a Aids, este general da virologia já criou anticorpos contra os ataques de rivais. O importante é que nesta campanha ele está do lado da humanidade.

ISTOÉ – Na semana passada, o Departamento de Saúde dos Estados Unidos declarou que a droga metaanfetamina está provocando uma nova leva de contaminação pelo HIV no país. Por que isso ocorre?
Robert Gallo

Drogas facilitam as transmissões de HIV em mais de uma maneira.
O primeiro modo se dá por meio do abuso de drogas de aplicação intravenosa.
Esta é uma forma muito eficiente de espalhar o vírus porque as pessoas tendem
a compartilhar as seringas e há a contaminação pelo sangue. O segundo problema com as drogas é que estas substâncias tiram a racionalidade e as inibições das pessoas. Aliás, a metaanfetamina é agora usada também com propósitos sexuais. Ela incita a práticas sexuais inusitadas, pouco comuns. Deste modo, os perigos
de contaminação sexual também aumentam. Esta parece ser a droga da moda e
é muito perigosa.

ISTOÉ – Este alerta das autoridades americanas parece ter ligação direta com o caso de um paciente soropositivo a que se chamou ?O Homem de Nova York?. Segundo consta, ele seria alguém que teve relacionamentos com múltiplos parceiros em pouco tempo. E apresentava um quadro avançado de Aids, com o vírus resistente às drogas. O que o sr. tem a dizer sobre este caso?
Robert Gallo

O chamado Homem de Nova York é uma bobagem. É apenas um golpe publicitário incentivado por David Ho. O que, devo acrescentar, acontece periodicamente. Esta história nunca deveria ter ido adiante. O pessoal da saúde pública de Nova York entrou em pânico e fez muito barulho na imprensa sobre
algo que não existia. A resistência às drogas por pacientes com a doença é um fenômeno bem conhecido. Para se ter uma idéia do problema, em Baltimore, onde trabalho, 50% dos pacientes que acompanhamos são resistentes aos medicamentos e temos de usar novos métodos para lidar com esta dificuldade. E 15% daqueles que entram em nossa clínica pela primeira vez e nunca receberam tratamento antes apresentam infecção por vírus multi-resistentes. Então, nada do que foi alardeado é novidade. O que seria uma novidade é que, segundo eles, este seria um super HIV. O que também se trata de bobagem. O motivo que os levou a achar que tinham em mãos um super HIV foi que a doença naquele paciente progrediu rapidamente. Só que isso acontece com todos os tipos de HIV e nem
por isso significa que o vírus é mais infeccioso. As autoridades, manipuladas por alguém que desejava fazer algum barulho, confundiram a virulência naquele indivíduo com uma potencial virulência epidêmica – uma progressão rápida de infecção entre a população. E isso é uma tremenda besteira. Não existe nenhum super HIV. E mais: não vai surgir nenhum super HIV.

ISTOÉ – O sr. afirma isso com muita convicção. Poderia explicar por que não surgirá um super HIV?
Robert Gallo

O que o chamado Homem de Nova York teve foi uma dupla infecção: contaminou-se com vírus que usam diferentes ‘portas’ de entrada para as células a serem invadidas. Um deles, o mais virulento, mostrou-se resistente a algumas das drogas, mas é de transmissão pobre. Tanto que as mesmas autoridades que gritaram não conseguiram documentar um único caso no qual um vírus deste homem tenha infectado outra pessoa. Aliás, previ isso na época. O que se passou em Nova York foi que o pessoal da saúde pública de lá acha que nós, cientistas, não damos valor à área de saúde pública e não compreendemos os perigos relativos a esse campo. O que nós, pesquisadores, dizemos é que eles, por seu lado, não entendem nada de ciência. Quando desenvolvi o teste para detecção do vírus no sangue, eles me disseram que não o achavam válido porque acreditavam que anticorpos significavam proteção ao indivíduo. Eu respondi: vocês não sabem nada, mas eu sei: com o retrovírus (classe na qual está incluído o HIV), os anticorpos indicam que o indivíduo continua infectado e tendo o vírus replicado. Isso porque este vírus acha um modo de integrar seus genes ao material genético do hospedeiro.

ISTOÉ – Foi muito barulho por nada?
Robert Gallo

Agora parece que aquele indivíduo nem sequer é resistente às drogas, pois tem respondido bem a algumas terapias. E os que fizeram o barulho estão rezando para que esta história seja esquecida.

ISTOÉ – Enquanto isso, muita gente do mundo ficou apavorada.
Robert Gallo

Não há razão para pavor com este caso. Existe muita coisa apavorante no que toca ao HIV. O que eles acharam foi que seria boa idéia apavorar as pessoas para que elas tomassem mais cuidado ou tratassem o HIV com mais seriedade. Não apoio esta porcaria. Quando as pessoas são repetidamente apavoradas e a catástrofe se mostra menor do que a anunciada, elas passam a não acreditar mais na catástrofe. Existem razões de sobra para se morrer de medo da Aids. A doença pode matar, por exemplo. Não é preciso inventar motivos. Eles são reais e estão aí. Há tempo sabemos que o HIV está ficando resistente aos medicamentos. Isso é evidente. O que temos de fazer é tratar os pacientes de modo apropriado e o mais inteligentemente possível. Mas procurar manchetes de jornais não é maneira própria ou inteligente para se enfrentar o problema. Acho, como disse, que o episódio todo foi muita ingenuidade por parte das autoridades de Nova York e muita manipulação por parte de David Ho. Não conheço nenhum cientista americano que saiba deste caso e que não concorde comigo.

ISTOÉ – O que deveria ser feito para enfrentar a doença na África?
Robert Gallo

Eles precisam de acesso às drogas. O problema é que isso não é tão simples, como eu disse há três anos, para surpresa do Banco Mundial. Não se pode simplesmente descarregar os medicamentos na praia e dizer “tomem o remédio” e esperar que os africanos se virem sozinhos. É preciso acompanhamento do processo terapêutico. Nós também discordamos da Organização Mundial da Saúde, que dá uma fórmula de coquetel (combinação de remédios contra a enfermidade) para eles recomendando para usar os remédios x,y,z, por exemplo. Não existe uma fórmula de coquetel. Todas as evidências mostram que o que é recomendável numa região pode não ser bom para outra. Em primeiro lugar, a variante do vírus pode ser diferente nos dois pontos. Depois, a formação genética das pessoas pode ser diferente. E em terceiro lugar, e mais importante: o status educacional do indivíduo e sua capacidade de seguir o tratamento, tomando a combinação de remédios de modo adequado, variam muito. E isso leva a questões fundamentais. Vamos usar uma droga que traz mais complicações do que outras se ela é mais eficiente? Para pessoas de uma grande cidade, a resposta é sim, vamos usar. Mas para as zonas rurais, a reposta é não, pois será difícil acompanhar o tratamento e as dificuldades. Algumas pessoas desenvolvem resistência genética, que deve ser observada pelo médico. Temos também de ter programas que envolvam a comunidade, com planos educacionais, treinamentos de doutores e enfermeiras. E isso é o que estou fazendo na África. O que me dá mais orgulho do governo americano atual é o que estamos tentando fazer na África. O presidente George W. Bush criou o Programa Presidencial de Emergência de Combate à Aids. Não envolve apenas o dinheiro – US$ 15 bilhões –, mas também um trabalho de acompanhamento. Ele está entregando o dinheiro a cientistas que sabem o que estão fazendo, e não a grandes organizações que simplesmente vão despejar o dinheiro nos países africanos, onde muitas autoridades somem com a verba.

ISTOÉ – O Brasil ameaça quebrar as patentes dos medicamentos contra o HIV. O que o sr. acha desta posição?
Robert Gallo

Respeito esta posição, que busca um patamar moral elevado, de ajuda aos pobres. Mas o problema é que acho contraproducente ameaçar e apertar a indústria farmacêutica demasiadamente. Eles podem parar de investir nas pesquisas e nos deixar falando sozinhos. Se eles vêem que seus esforços e seus investimentos serão usados e não haverá retorno suficiente, podem simplesmente deixar a área. Eles, afinal, devem explicações a seus acionistas. Quando digo acionistas, não estou falando apenas das figuras caricatas de homens ricos fumando charutos e contando dinheiro. Muitos dos acionistas são donas-de-casa, trabalhadores, gente pobre também, que aplicou suas economias de vida nas ações destas indústrias. Esta gente também quer que seus investimentos dêem lucro. Se a indústria farmacêutica parar de investir em pesquisas sobre o HIV, vamos ter muitos problemas, pois o vírus muda de configuração, cria resistência e o arsenal terapêutico que temos hoje não será efetivo amanhã. E aí, o que faremos, se não
há inovações motivadas pelas empresas farmacêuticas? Assim, acho que o
Brasil, e outros países, devem pressionar para que se atinja um patamar moral elevado, no qual o barateamento das drogas seja uma meta, mas sem afugentar
a indústria farmacêutica da mesa de negociações.