Por cima, a avenida Inajar de Souza, importante via de acesso para a
Marginal Tietê, na zona norte de São
Paulo, exibe o monótono panorama de construções simples, pouco verde e
muitos carros em disparada. Mas, um
pouco abaixo de sua superfície, o visual
se torna bem mais feio. É por ali que
corre a galeria fluvial Cabuçu de Baixo,
um emaranhado de quatro canais de aproximadamente três metros de altura por quatro de largura que viram um breu total nos primeiros dez metros a partir de seu acesso. Em dias de chuva forte, esses canais entopem de água até o teto e de todo o lixo que a violência das enxurradas vem arrastando Deus sabe de onde. Passada a tempestade, resta um trajeto de água pútrida e fedorenta que bate na canela, decorada com toda a sorte de resíduos – colchões, calças jeans, lâmpadas fluorescentes, galhos de árvore, pneus, tubos de PVC e muito, muito plástico. As paredes exibem uma textura nojenta, que faz a festa das baratas do local – elas são numerosas e montam curiosas colônias nos bueiros por onde entram os raios de luz.

É sob esses inacreditáveis fachos luminosos que o grafiteiro e artista plástico José Augusto Amaro Capela, o Zezão, 33 anos, pinta os chamados flops, desenho caligráfico azul-claro, que soma a forma do ideograma e do arabesco. Zezão grafita essas paredes há quatro anos e contabiliza que já deixou uma centena de marcas no local. Na sexta-feira 15, as fotos de sua intervenção urbana poderão ser vistas na exposição Subterrâneos, na galeria Choque Cultural, em São Paulo, junto com seu trabalho de artista plástico. Já sua galeria subterrânea fica destinada para quem tem estômago forte. Na sexta-feira 8, ele convidou a ISTOÉ para um tour underground, num trajeto de três quilômetros que começou ao meio dia e terminou às 14h30. A entrada, uma rampa em declive que desemboca no córrego sujo, na altura do número 1.000 da avenida, não é convidativa. Ela é usada como banheiro pela população de rua e tomada pelo lixo e pelo mato que se favoreceu do abandono. Mas o pior é a decisão de enfiar os pés naquele caldo imundo. Mesmo protegido por uma roupa de homem-rã, cortesia do próprio Zezão – uma calça de plástico impermeável acoplada a uma bota de borracha –, o primeiro contato causa frio na espinha. “Bem-vindos ao inferno”, saúda o grafiteiro com sua lanterna, versão punk de Vírgilio, o poeta que guiou Dante pelos rios subterrâneos de A divina comédia.

Pé inchado – A sensação de frio continua nos pés, acionando a paranóia de
alguma infiltração. No início do ano, ao explorar os esgotos de Vila Madalena,
uma das cinco galerias onde Zezão já deixou suas marcas, ele se machucou com um prego escondido no chão. No dia seguinte, amanheceu com o pé inchado, indo direto para o pronto-socorro. “No início, eu calçava cinco sacolas plásticas de supermercado em cada pé e amarrava. Andava 15 metros e elas furavam.” Embora
a bota dê segurança, é preciso ficar de olho no chão, para não trombar com algo desagradável. Quando escolheu esse trajeto, Zezão evitou a segunda galeria –
na semana passada ele deparou com dois cachorros em putrefação. Cada objeto
é uma surpresa – a visão de uma boneca e um carrinho de brinquedo naquele contexto chega a ser chocante.

Passados alguns minutos, a noção do tempo se apaga. O silêncio só é quebrado pela queda da água de alguma manilha a distância. Volta e meia, o estrondo de algum carro passando em algum bueiro ressoa no túnel que afunila ao longe. Ouve-se o latido longínguo de um cão, ressonância fantasmagórica que remete ao Cérbero, guardião do inferno na mitologia grega. Trata-se apenas de Scooby Doo, um dos dois cães de Tereza Biscali, 43 anos, há quatro morando numa das saídas da galeria. Ao receber a expedição, Tereza se apronta a varrer o pedaço de chão onde mora com o marido, catador de ferro velho que antes vendia especiarias na feira, mas perdeu tudo numa enchente. “Não saio daqui porque não tenho condição. Não está dando para sobreviver. Ninguém faz idéia de quantos cobertores a gente já perdeu com as enchentes. Se os animais saem, são atropelados. E, com a queda do dólar, o quilo de ferro baixou para R$ 0,08”, afirma, enquanto cozinha um pedaço de carne no fogão à lenha improvisado, indiferente ao ambiente que a cerca.

Mais adiante, Zezão encontra uma parede “branca” para pintar mais um flop. Em traços rápidos e precisos, ele desenha seus ornamentos com um rolinho de tinta látex azul-caiçara, com acabamento em spray azul-noturno. “Criei esse elemento como minha identidade. O azul é uma cor de vida, que dá um grande contraste com esses locais deteriorados.” Alguns passos à frente, insinua-se a luz do rio Tietê, onde uma draga retira a sujeira que as galerias vão recolocar na próxima chuva. A sensação de alívio purifica o ambiente. Antes, Zezão sobe num monte de areia que chama de mirante e mostra a correnteza veloz do primeiro corredor, em direção a
um buraco negro. “Essa aí, velho, se alguém cair nela, não tem salvação.” Se a
frase explica um pouco sua atração inconsciente pelos subterrâneos, suas “ações” são mais concretas. Como quem não quer nada, Zezão identifica a condição de
ruína das metrópoles atuais e questiona o mercado de arte e suas paredes assépticas, ditadas pela moda. Nascido no bairro do Canindé, onde ainda mora
com a mulher, Vanessa, ele já foi motoboy, motorista de caminhão, vendedor e bancário. Hoje vive de sua arte, de aulas e da produção de cenários para desfiles
e eventos. Já foi preso quatro vezes grafitando, mas cansou do período da simples pichação. Se a prática pode ser acusada de emporcalhar a cidade, sua arte mostra que existe escondida uma sujeira bem maior.

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