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“A Copa da África do Sul é a realização de um sonho meu”
João Havelange, presidente de honra da Fifa

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Pouco antes das 11 horas da manhã do dia 11 de junho, Nelson Mandela vai emergir de sua autoclausura na pequena vila de Qunu, na província sul-africana de Cabo Oriental, para assistir à partida inaugural da Copa do Mundo de 2010 entre África do Sul e México, em Johannesburgo. Diante das câmeras que transmitirão o maior evento esportivo do mundo para cerca de um bilhão de pessoas, Mandela será lembrado como o homem que liderou a luta contra o apartheid, conseguiu impedir que o país explodisse em uma guerra civil quando esse regime caiu, em 1990, e, em última instância, como o grande responsável pela África do Sul, um país negro e em desenvolvimento, ter o direito de sediar uma Copa do Mundo. A mais de sete mil quilômetros dali, no Rio de Janeiro, Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange, ou simplesmente João Havelange, um carioca de origem belga que transformou o futebol em um esporte global, provavelmente estará assistindo a tudo isso pela televisão, como qualquer torcedor. Concordará com os louros que serão distribuídos àquele que é, sem dúvida, um dos maiores líderes do século XX, mas não deixará de lembrar que nada do que estará se passando na maior cidade sul-africana naquele momento aconteceria não fosse por sua causa.

Dois anos mais velho que Mandela, Havelange, 94 anos, assim como o símbolo máximo desta jovem África do Sul multirracial, está com a saúde enfraquecida. Após quase dez dias internado por conta de uma infecção cutânea na face, em maio, seus médicos ainda não decidiram se ele deve encarar as oito horas de voo que separam o Rio de Johannesburgo. Mas, mesmo longe daquela que deve ser uma das mais marcantes cerimônias de abertura de Copa do Mundo da história, o ex-nadador do Fluminense que chegou a representar o Brasil na Olimpíada de Berlim, em 1936, estará assoberbado de orgulho. Até porque, quando o assunto é África, Havelange nunca deixou a modéstia se fazer presente. “Vejam bem quantos séculos tem a África. Nunca um evento foi levado para aquele continente. Quem levou foi a Fifa e quem planejou foi a minha gestão”, disse ele, em uma recente entrevista. “É a realização de um sonho”, faz questão de afirmar.

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Filho de um comerciante de armas belga, que por certo muito lucrou com os incessantes conflitos africanos ao longo dos últimos dois séculos, Havelange não pode ser exatamente lembrado como um ativo combatente dos direitos humanos ou um crítico das desigualdades sociais, políticas e econômicas que tanto caracterizaram regimes opressores que se instalaram na África pós-colonial. Sua ligação com o continente nasceu e se cristalizou, na verdade, por interesses políticos mútuos. Foi exatamente por conta do apoio das federações de futebol dos mais de 50 países africanos que Havelange conseguiu romper a até então inabalável hegemonia europeia na Fifa e tornar-se o sétimo e mais longevo presidente da entidade máxima do futebol mundial – até então, apenas ingleses, franceses e um belga haviam comandado a federação.

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Sua “africanização” começou a ocorrer em 1970, quando completava 12 anos à frente da extinta Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e carregava no currículo três títulos mundiais de futebol. Naquele ano, os países africanos aumentavam a pressão na Fifa por maior participação no comitê executivo da entidade, mais espaço nas Copas seguintes – havia apenas uma vaga para a África até então – e um posicionamente veemente contra o apartheid na África do Sul. A Fifa era presidida há mais de uma década pelo inglês Stanley Rous, que sucedera um outro inglês, Arthur Drewry, e que pouca atenção dava aos apelos africanos, sem contar a posição ambígua a respeito do regime racista sul-africano.

Havelange percebeu o vácuo e nele entrou. Em 1971 anunciou sua candidatura e pelos três anos seguintes visitou com sua mulher 86 dos 118 países-membros da entidade, em especial os africanos e árabes. Sua bandeira era uma democratização maior – ao menos na representatividade – do principal evento da Fifa, a Copa do Mundo. Para surpresa dos europeus e, em especial dos ingleses, venceu a eleição por 62 a 56 votos, com o apoio maciço dos africanos, árabes e asiáticos. Como presidente, cumpriu seu compromisso. Em 1978 ampliou de 16 para 24 o número de participantes e em 1998, seu último ano de mandato, expandiu a competição para as atuais 32 seleções. Ao longo de seus 24 anos à frente da Fifa, Havelange colecionou um sem-número de acusações, críticas e inimigos. Apesar de toda a controvérsia de seu legado no futebol mundial – e brasileiro –, não há como negar que seu papel foi vital para levar a Copa ao mais pobre dos continentes do mundo.


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