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ISOLADOS NA RÚSSIA
Interior de uma das quatro câmaras da Mars500: o simulador
inclui um módulo de aterrissagem para Marte

Imagine viver isolado com outras cinco pessoas durante 520 dias num ambiente de 550 metros cúbicos divididos em quatro câmaras. Receber uma cota de comida desidratada, cumprir uma rotina de exercícios, respirar ar e beber água reciclados e travar contato com o mundo exterior apenas por e-mail. Desde a quinta-feira 3, esse é o cenário da Mars500, experiência que vai simular, a partir de uma estação criada em Moscou, o equivalente a uma viagem à Marte – mas com gravidade. É uma espécie de “Big Brother” de simulação espacial, fundamental para ver como as pessoas se comportariam na longa jornada até o Planeta Vermelho que não acontecerá antes de 2020.

A equipe é formada pelo francês Romain Charles, 31 anos, o ítalo-colombiano Diego Urbina, 27 anos, os russos Sukhrob Kamolov, 32 anos, Mikhail Sinelnikov, 37 anos, Alexey Sitev, 38 anos, Alexandr Smoleevskiy, 33 anos, e o chinês Wang Yue, 26 anos. Um deles ficará na reserva. Longe do clima de competição da corrida espacial durante a Guerra Fria, hoje a relação é de colaboração. O Mars500 é uma parceria entre a Agência Espacial Europeia (ESA) e o Russian Institute of Biomedical Problems (RIBM), que está coordenando pesquisas sobre o projeto. No ano passado, uma equipe passou 105 dias em isolamento, num ambiente semelhante. Os primeiros estudos com base nesse experimento mostram que o humor e o funcionamento cognitivo, como a memória, são prejudicados.

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TRAJES
As roupas espaciais serão testadas durante a missão

Quando a experiência chegar no 250º dia, a equipe será dividida em dois grupos. Um deles irá simular a chegada à superfície de Marte, com trajes espaciais, em uma das câmaras, enquanto o outro permanecerá na “nave”. A escolha da equipes foi feita pelo RIBM e pela ESA. “As seis pessoas que vão passar 520 dias nas câmaras passaram por extensos testes e treinamentos psicológicos”, diz Patrik Sundblad, chefe da unidade de ciências biológicas da ESA. “É difícil imaginar exatamente que tipo de problemas podem ocorrer no confinamento. Mas quando os antevemos, já trabalhamos na prevenção.” Os treinamentos envolvem avaliações das diferenças de personalidade e interações do grupo.

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Como não vai haver anulação da gravidade, o principal ponto de estudo são os efeitos psicológicos do confinamento de longo prazo. “É algo muito sério, mais traumático do que estar na cadeia”, diz Luiz Alberto Py, psiquiatra que foi consultor em três edições do “Big Brother Brasil”. “Quanto maior o confinamento, maior o impacto. Tanto que o maior castigo nas prisões é a solitária”, afirma. A resiliência de cada um varia, mas há condições que podem tornar o isolamento mais angustiante, como a falta de notícias da família e dos amigos e personalidades difíceis de conciliar.

Esse tipo de experimento é acompanhado de perto por uma junta de médicos e psicólogos. Thais Russomano, coordenadora de microgravidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Ph.D em fisiologia espacial, afirma que o grande problema é a imprevisibilidade das missões reais. “Numa simulação, se um membro da equipe tem uma depressão muito grande, com risco de suicídio, ele pode ser afastado. Numa missão real, não há muito o que fazer”, diz. Outro problema das longas jornadas é o tédio. “Mesmo tendo uma porção de atividades de manutenção, científicas e pessoais para cumprir, a rotina torna-se monótona”, afirma Thais.

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MULTICULTURAL
Equipe de três russos, um chinês e dois europeus. O reserva também é russo

Uma expedição para Marte quebraria o recorde da mais longa missão espacial tripulada, em 1995, que manteve o astronauta russo Valeri Polyakov no espaço por 437 dias na Estação Espacial Mir. Numa viagem de longa duração, o desafio é manter uma rotina saudável, com sono e alimentação equilibrados, conciliando diferenças de língua, cultura e profissão, por exemplo. “Em missões reais, ainda há fatores como a radiação e os efeitos da falta de gravidade, especialmente na musculatura e nos ossos”, diz Thais. Num ambiente de microgravidade perde-se 1% de massa óssea, em média, por mês. Para manter os músculos, é preciso seguir uma rotina rígida de exercícios diários.

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Como o corpo humano é desenhado para funcionar sob o efeito da gravidade, estudos mostram que a ausência desta força traz mudanças drásticas, acarretando anomalias no sistema linfático e cardiovascular, alterando a pressão arterial e o batimento cardíaco. Com o tempo, a atividade cerebral cortical é reduzida, causando mudanças de humor. Ocorre perda de massa muscular e óssea, além de anemia espacial (o corpo passa a produzir menos glóbulos vermelhos) – desafios que a ciência aeroespacial tenta prever e combater. Com a simulaçãoda Mars500, os cientistas se debruçam no elemento do qual mais depende o sucesso das expedições espaciais: a mente humana.