Como boa filha de uma era em que os produtos industriais já nascem com apelido, ela se chama Bik.e. As fábricas não deixam mais esse inalienável trunfo mercadológico em mãos de amadores, como os que no Brasil chamaram o velho sedã Volkswagen de Fusca.

A Bik.e será, quando entrar em linha de montagem, uma sucessora do Fusca. Tem a mesma conjugação de linhas curvas. Encarna a próxima encarnação do meio de transporte ao mesmo tempo racional, popular e simpático. Como tal, apresentou-se oficialmente ao público, semanas atrás, numa feira de automóveis na China. Mais um sinal de que vem para pegar onda.

Talvez pela enganosa simplicidade externa que cobre a complicação eletrônica de suas entranhas, foi tratada pela crítica especializada como uma espécie de iPod.

Na China, pelo menos, abafou. Seu estande juntou mais gente que os de automóveis. Está para o velho Fusca, ou mesmo para o novo Beetle, como o iPod para o rádio-transístor, que revolucionou a maneira de torcer pela Seleção do Brasil na Copa de 58.

Ela é elétrica. Carrega-se até em bateria do automóvel. Dobrável como um contorcionista de circo, cabe no compartimento do estepe, no fundo do porta-malas. Anda a 20 quilômetros por hora, por ser essa a velocidade que na Alemanha dispensa o uso de capacete. E tem fôlego para cobrir uns 20 quilômetros, por ser essa a distância que, supostamente, liga as tomadas de qualquer destino numa cidade.

Seus faróis são de Leds, embutidos no quadro e prontos para poupar toda a energia possível da bateria minúscula, que se encaixa num corpo esguio, à primeira vista sem espaço para coisa alguma. Seus freios são a disco nas rodas dianteira e traseira. É muda. Ou seja, mais que silenciosa. Promete não emitir nada, a não ser impulsos contagiosos de se ter uma igual.

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A Bik.e vem com tudo para agradar, a começar pelo nome esperto e um diploma automático na dura disciplina que os ambientalistas enchem a boca, chamando de “mobilidade sustentável”. “Mobilidade sustentável” é fácil de vender. “Bik.e”, sim.

Os brasileiros que cresceram nas últimas décadas sem se sentar atrás do volante de um Fusca, com o para-brisa a um palmo da testa e o ronco do motor no cangote, mal sabem o que foi, há pouco mais de meio século, a chegada daquele carro à indústria nacional. Ninguém saía da adolescência sem ser movido pelo projeto de comprar o primeiro Fusca com o primeiro saldo do primeiro emprego.

Foi ele que inaugurou em larga escala no Brasil a mania de rodar a esmo. De uma hora para outra, tornou-se exequível, ou mesmo sensato, sair do Rio de Janeiro nos fins de semana para almoçar em Petrópolis ou Teresópolis, só pelo gosto de subir a serra e descer. Parentes que moravam na roça deram para receber, sem mais nem menos, visitas de sobrinhos e primos bissextos, fingindo não perceber que aquele estreitamento repetindo de frouxos laços familiares era, no fundo, uma declaração de amor às estradas e às grandes distâncias.

As revistas e os cadernos de automóvel e turismo rodoviário vieram depois. Encontraram na praça um neologismo especial para esse hábito: “gasolinar” – ou seja, queimar gasolina à toa. O verbo caiu em desuso quando o preço do petróleo subiu e a fumaça do escapamento, tida como puro progresso, virou poluição. E lá vem a Bik.e, como um aviso concreto de que a era do automóvel está mesmo se despedindo.


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