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O ponto de partida da viagem proporcionada pelo livro “Até o Fim do Mundo” (Objetiva), do escritor britânico Paul Theroux, é uma travessia pelo continente europeu num antigo vagão do Expresso Oriente – a paixão de Theroux por trens também o levará a embarcar no Expresso Transiberiano. O livro reúne mais de 80 crônicas escritas pelo autor em suas viagens pelo mundo. Destaque para a visita ao escritor argentino Jorge Luis Borges, quando eles travam uma bem-humorada conversa sobre política, história e, sobretudo, literatura.

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Leia abaixo o início do primeiro capítulo de “Até o Fim do Mundo”, de Paul Theroux

O Misterioso sr. Duffill

Eu me lembro do sr. Duffill porque seu nome se tornou um verbo – usado inicialmente por Molesworth, e mais tarde por mim. Ele estava bem à minha frente, na fila da Plataforma 7 da estação Victoria, onde eram feitos os “Embarques para o Continente”. Era velho e usava roupas grandes demais para ele; talvez tivesse saído de casa às pressas e vestido as roupas erradas. Ou talvez tivesse acabado de deixar o hospital. Ao caminhar, pisava sobre as bainhas das calças, que roçavam o chão, transformando-as em farrapos. Carregava vários pacotes de formato estranho, embrulhados em papel pardo e amarrados com barbante – eram mais parecidos com a bagagem de um terrorista descuidado do que com a de um intrépido viajante. As etiquetas dos pacotes tremulavam na corrente de ar da plataforma e todas informavam seu nome, R. Duffill, e seu endereço, Splendid Palas Hotel, Istambul. Iríamos viajar juntos. Uma viúva rica, coberta por um véu recatado, do tipo que é satirizado nas comédias de costumes, teria sido mais bem-vinda – sobretudo se sua bolsa estivesse recheada de gim e alguma herança. Mas não havia nenhuma viúva; havia apenas excursionistas, alguns europeus do continente voltando para casa com sacolas da Harrods, vendedores, garotas francesas com amigas carrancudas e grisalhos casais ingleses, que aparentemente estavam embarcando, pois tinham os braços cheios de romances, em luxuosos adultérios literários. Nenhum deles iria além de Liubliana.

Duffill iria para Istambul – perguntei-me qual seria o motivo. Eu estava partindo sem chamar atenção.

Não tinha emprego – ninguém notou que, de repente, parei de falar, beijei minha esposa e embarquei sozinho no trem das 15h30.

Com o trem roncando através de Clapham, ocorreu-me que viajar era em parte uma fuga, em parte uma perseguição. Deixamos para trás os terraços de tijolos, os depósitos de carvão e os exíguos jardins dos subúrbios ao sul de Londres, e passamos pelas áreas esportivas do Dulwich College – onde garotos de gravata se exercitavam preguiçosamente.

Embalado pelo movimento do trem, eu já nem me lembrava das manchetes dos jornais que lera durante a manhã: BEBÊ KRISTEN: MULHER SERÁ ACUSADA e PLANO PARA LIBERTAR ASSASSINA DE NOVE ANOS. Nenhuma delas estampava: ROMANCISTA DESAPARECE, o que era bom. Passamos por uma fileira de casas geminadas e entramos em um túnel. Depois de um minuto em completa escuridão, entramos em um novo cenário – campos abertos onde vacas pastavam e homens de blusões azuis empilhavam feno.
 
Tínhamos emergido de Londres, a cidade cinzenta e úmida que ocupava o subsolo. Em Sevenoaks, atravessamos mais um túnel, outra cena pastoral, cavalos escavando a terra, algumas ovelhas ajoelhadas, corvos pousados em secadores de lúpulo e, por uma das janelas, o rápido vislumbre de um conjunto de casas pré-fabricadas. Por outra janela, uma fazenda jacobita e mais vacas. Assim é a Inglaterra: os subúrbios se sobrepõem às fazendas.

Em diversas passagens de nível, as estradas rurais estavam entulhadas de automóveis, que formavam filas de 100 metros. Os passageiros do trem olhavam com uma maligna satisfação para os carros enfileirados e pareciam murmurar: “Abram alas, babacas!”

O céu estava escurecendo. Estudantes de blazers azul-escuros, com as meias arriadas, carregando tacos de críquete e malas escolares, sorriam de modo presunçoso na plataforma de Tonbridge. Passamos velozmente por eles, apagando aqueles sorrisos. Não parávamos nem mesmo nas estações maiores, que eu contemplava do vagão-restaurante, tomando chá em uma xícara descartável. O sr. Duffill, também recurvado, vigiava seus pacotes e mexia o chá com uma espátula, dessas que os médicos usam para comprimir a língua e examinar a garganta. Tinha o olhar ansioso de um homem que esqueceu a bagagem em algum lugar, o olhar de um homem que pensa estar sendo seguido. Suas roupas largas faziam com que parecesse frágil. Um sobretudo de gabardine pardo pendia de seus ombros – com mangas tão compridas que chegavam às pontas de seus dedos, combinando com as bainhas pisoteadas das calças. Ele cheirava a crosta de pão. Ainda usava o boné de tweed e, assim como eu, lutava contra um resfriado. Seus sapatos eram interessantes, do tipo resistente usado pelas pessoas do campo. Embora eu não conseguisse identificar seu sotaque – enquanto ele pedia sidra ao garçom –, havia algo de provinciano nele, uma teimosa sobriedade nas roupas práticas, que seriam consideradas andrajosas em um londrino. Ele certamente saberia dizer onde comprara o boné e o casaco, quanto pagara por eles e havia quanto tempo comprara os sapatos. Alguns minutos mais tarde, passei perto dele e vi que ele abrira um dos pacotes. Uma faca, um pedaço de pão francês, um tubo de mostarda e fatias de salame de um vermelho vivo estavam à sua frente. Perdido em seus pensamentos, sem pressa, ele mastigava um sanduíche.

Na Gare du Nord, nosso vagão foi acoplado a outra locomotiva. Duffill e eu, da plataforma, observamos a operação. Depois embarcamos. Ele demorou bastante tempo para subir no vagão, e o esforço o deixou resfolegante no corredor. Ainda estava lá, ofegando, quando o trem saiu da estação para fazer o trajeto de vinte minutos até a Gare de Lyon, onde nos juntaríamos ao resto do Expresso do Oriente. Passava das 11 da noite e a maioria dos prédios ao redor estava às escuras. Ao embarcar no Expresso do Oriente, Duffill usava óculos com aro de metal com tanta fita adesiva nas lentes, que ele não conseguiria enxergar a Mesquita Azul. Resmungando, juntou aos seus pacotes uma mala amarrada com várias correias de couro e lona – uma garantia adicional para que o fecho não estourasse. Encontramo-nos de novo alguns vagões à frente, para ler a placa ao lado do vagão-leito: EXPRESSO DO ORIENTE e seu itinerário: PARIS – LAUSANNE – MILÃO – TRIESTE – ZAGREB – BELGRADO – SÓFIA – ISTAMBUL. Permanecemos ali, olhando para a placa; Duffill usava os óculos como binóculos.

Finalmente, disse:

– Viajei neste trem em 1929.

Isso parecia pedir uma resposta. Mas, quando ela me ocorreu (“A julgar pelas aparências, deve ter sido o mesmo trem!”), Duffill já havia recolhido seus pacotes e a mala com as correias e se afastado. Era um ótimo trem em 1929 e nem é preciso dizer que o Expresso do Oriente é o trem mais famoso do mundo. Assim como o Transiberiano, liga a Europa à Ásia, o que em parte explica seu romantismo.