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CONFRONTO
Exército do espanhol De Soto invade aldeia
indígena às margens do Mississippi

O conquistador Cristóvão Colombo viajou com destino ao Oriente e terminou por ancorar nas Ilhas Bahamas. Pisou terra firme acreditando estar nas Índias Orientais, e por isso chamou de “índios” o povo nativo que lá encontrou. Ele morreria na Espanha ignorando que não alcançara de fato as Índias – e também sem jamais ter ancorado em solo continental norte-americano, conforme a história relata. Em resumo, Colombo “foi um looser (fracassado)”, como o define o sarcástico jornalista e prêmio Pulitzer Tony Horwitz, autor do livro “Uma Longa e Estranha Viagem” (Rocco), em que desconstrói alguns mitos da formação do povo norte-americano. Horwitz argumenta que, por uma necessidade de romper com a identidade inglesa, os nacionalistas americanos do século XIX trataram de transformar o navegador genovês em um “herói injustiçado, um agente da cristandade e fonte de orgulho étnico”. E a biografia enigmática de Colombo, de quem não se sabe muito bem a origem, o local de nascimento ou o nome exato, contribuiu para que mitos fossem construídos em torno de sua história.

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O FRANCÊS E O NATIVO
 Em 1564 o capitão rené laudonnière
(à dir.) encontra-se com indígena

Mas a desconstrução de Colombo é apenas o aperitivo revisionista do livro de Horwitz. O autor viajou pelos diversos marcos históricos do descobrimento americano para descortinar eventos fundamentais para a compreensão de sua cultura. “É preciso expandir a história americana e incluir em sua formação os espanhóis, os franceses e os portugueses. Nós não somos uma nação anglo-americana hoje e nem jamais fomos uma um dia. A jovem América já era muito diversa”, diz Horwitz, que reforça a forte influência dos vikings e normandos no norte do país, onde desembarcaram cinco séculos antes de as caravelas de Colombo – Santa Maria, Pinta e Nina – atingirem as ilhas do Caribe. Ele também afirma que bem antes de os ingleses se estabelecerem na América do Norte, em 1620, pelo menos três grandes grupos de embarcações espanholas estiveram na América do Norte, lideradas por Francisco Coronado, Hernando de Soto e Cabeza de Vaca. Eles colonizaram os povos nativos, adquiriram mercadorias valiosas, como o ouro, as generosas vinhas e ervas medicinais, como as folhagens de uma árvore que teria poderes de cura da sífilis e da blenorragia, doenças venéreas que assombravam os europeus na época. Uma das capitânias engajadas na busca das ervas era a do francês Bartholomew Gosnold, que levou a bordo um dos mais renomados estudiosos de ervas.

Horwitz também desfaz a tese corrente de que o primeiro refúgio protestante na América do Norte foi fundado por peregrinos ingleses em Plymouth, em 1620. Antes disso, em 1564, durante a Reforma religiosa, com a Europa dividida entre católicos e protestantes, huguenotes franceses liderados por João Calvino decidiram pela viagem à costa americana. Após avaliar os riscos da aventura náutica, concluiu-se que a missão era estratégica e lucrativa: permitiria marcar uma base de salvamento para os frequentes naufrágios na região e contestar a ascendência espanhola sobre as Américas. O autor chegou a essa informação após tomar contato com uma antiga tela feita por um artista europeu que estava junto na comitiva real que viajou à América do Norte e na qual consta a descrição: “Um gigante quase nu, com o braço ao redor dos ombros de um minúsculo janota. O gigante é bem delineado, como um halterofilista, e coberto de tatuagens. Ele usa braceletes e tornozeleiras feitas de bagas, uma franja de asas de besouro debrua suas coxas musculosas. O homenzinho ao seu lado parece vestido para uma farsa elisabetana: meias azuis, jarreteiras escarlates, gibão bem cortado, borlas de veludo e um chapéu de penacho tão extravagante quanto seus bigodes retorcidos.”

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Essa aquarela retratava o encontro de um chefe indígena da Flórida com o capitão francês René Laudonnière.
Os estilos desbravadores dos espanhóis e franceses eram radicalmente diferentes. Ao contrário da postura agressiva dos navegantes da Espanha, nos relatos dos franceses se percebe que o trato prioriza a conciliação ao enfrentamento. Nos escritos sobre o encontro com os índios na costa americana aparecem frases como “não desejando parecer ingratos”, “conhecendo os sentimentos deles”, “com gestos e falas tranquilas, tentamos apaziguá-los”.

Um outro grupo de ingleses viajou à costa americana no final do século XVI, duas décadas antes do marco oficial da colonização naquele país. Encontrou um povo nativo habituado aos europeus e suas mercadorias – um dos relatos descritos pelo autor revela que, no primeiro contato entre os colonizadores e os nativos, diversos índios os saudaram em inglês.

Leia abaixo um trecho do prólogo de “Uma Longa e Estranha Viagem”, de Tony Horwitz

O Século Perdido

Os peregrinos não tinham muita simpatia por Cape Cod. “Uma imensidão inóspita, desolada e odiosa”, William Bradford o descreveu. “Cheio de animais e homens selvagens.” Em vez de permanecer, um pequeno grupo do Mayflower seguiu navegando em busca de um abrigo para o inverno. Em dezembro de 1620, eles chegaram a Plymouth, um lugar “apropriado para a situação”, escreveu Bradford. “Pelo menos foi o melhor que puderam encontrar.”
Durante uma viagem pelas estradas da Nova Inglaterra há alguns verões, eu também fui parar na costa de Plymouth. Poderia ter sido em Dedham ou Braintree ou qualquer outro dos muitos pontos de parada na autoestrada perto de Boston. Mas uma partida do Red Sox corria animada no rádio, de modo que continuei dirigindo até que acabei na saída de Plymouth. Quando parei para tomar uma cerveja na Myles Standish Liquor, indicaram-me a William Bradford Motor Inn como o melhor lugar que eu poderia encontrar no auge da temporada de turistas.
Cedo na manhã seguinte, saí para uma caminhada no passeio à beira-mar, e passei diante de uma casa de sopas de frutos do mar, uma loja de balas puxapuxa, um museu de cera e uma réplica do Mayflower ancorada na baía. Perto da água, erguia-se um marco com uma placa histórica sucinta, mesmo para os padrões da Nova Inglaterra.
Olhei ao redor e não consegui vêr nada, exceto asfalto e algumas pedras pequenas o bastante para arremessar sobre a água. Então avistei um solitário corredor se deslocando em velocidade pela calçada.
— Perdoe-me — disse, correndo atrás dele —, mas onde fica o Rochedo de
Plymouth?
Sem reduzir a marcha, ele espetou um polegar por cima do ombro.
— O senhor acabou de passar por ele.
Dezoito metros mais para trás, havia um recinto cercado por colunas, entre a calçada e a linha da costa. Entrando ali, cheguei a uma balaustrada se estendendo em volta de uma depressão rasa. No fundo havia uma protuberância de granito, a areia molhada ao redor estava coberta de pontas de cigarro e de canhotos de entrada para o museu de cera. O pedregulho, de cerca de meio metro quadrado, tinha uma fenda mal remendada no meio. Parecia uma batata fossilizada.
Alguns minutos depois, uma família chegou. Enquanto entravam no pórtico, o pai anunciou em tom solene para os filhos:
— Foi aqui que tudo começou. — Então eles se debruçaram por cima da balaustrada para olhar.
— É só isso?
— Acho que sim.
— Mas é, ora, não é nada.
— Nós temos pedras maiores que essa no quintal.
Não demorou muito e o pórtico estava lotado: ônibus com grupos de turistas, visitantes estrangeiros, gente que viera passar o verão acampando. A reação deles seguia um arco com a mesma trajetória, de seriedade solene ao choque e à hilaridade. Mas o Rochedo de Plymouth era um ícone da história americana. De modo que os visitantes respeitosamente tiravam fotografias ou apontavam câmeras de vídeo para o granito estático.
— Isto vai dar um belo de um filme para mostrar em casa.
— Pois é. Minha visita à Pedrinha de Plymouth.
— Os peregrinos deviam ter pés muito pequenos.
Eu fui conversar com uma mulher de shorts verdes e camiseta cáqui postada logo na entrada do recinto, contando visitantes com um contador estatístico.
Claire Olsen era uma guarda florestal veterana do parque de Plymouth, habituada a ouvir turistas desrespeitarem a pedra sagrada.
— Muitas pessoas vêm aqui esperando encontrar o rochedo de Gibraltar
— comentou. — Talvez tenham passado suas últimas férias por lá.
Ela também estava acostumada a responder a perguntas estranhas. Era verdade que o Mayflower havia se chocado com o Rochedo de Plymouth? Os peregrinos serviram a refeição de Ação de Graças em cima dele? O índio de bronze, de três metros de altura, numa colina com vista para a rocha — era em tamanho natural?
 


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