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O profícuo autor americano Philip Roth, 76 anos, acaba de lançar “Humilhação” (Companhia das Letras), o seu décimo livro em pouco mais de uma década. E a obra trata de uma situação exatamente inversa: o cotidiano de um artista de 65 anos que enfrenta uma dramática crise de criatividade. Seu nome é Simon Axler, um famoso ator que entra em decadência e, abandonado pela esposa, se envolve numa confusa relação amorosa, permeada por fantasias sexuais. Isso quase o leva ao suicídio.

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Leia trecho do livro

1. Sem deixar vestígio
Ele perdera a magia. O impulso se esgotara. Ele nunca havia fracassado no teatro, tudo o que fizera sempre fora vigoroso e bem-sucedido, e então aconteceu esta coisa terrível: ele não conseguia representar. Subir ao palco tornou-se uma agonia. Em vez da certeza de que teria um desempenho maravilhoso, sabia que ia fracassar. A coisa aconteceu três vezes seguidas, e na última vez ninguém mostrou interesse, ninguém foi. Ele não conseguia se comunicar com a plateia. Seu talento havia morrido.

É claro, para quem já passou por isso, é sempre diferente do que aconteceu com todas as outras pessoas. Sempre serei diferente de todo mundo, Axler dizia a si próprio, porque sou quem sou. Isso eu levo comigo — disso as pessoas sempre vão se lembrar. Porém a aura que ele possuíra, todos os seus maneirismos, excentricidades e peculiaridades, o que funcionara com Falstaff, Peer Gynt e o tio Vânia — o que valera a Simon Axler a reputação de último dos grandes atores de teatro clássico dos Estados Unidos —, nada disso agora funcionava em nenhum papel. Tudo que funcionara para fazer dele quem ele se tornara agora o fazia parecer um louco. Ele tinha consciência, da pior maneira possível, de cada instante que passava no palco. Antes, quando ele atuava, não pensava em nada. O que fazia bem, fazia por instinto. Agora pensava em tudo, e tudo que havia de espontâneo e vital era destruído — ele tentava controlá-lo com o pensamento e acabava destruindo-o. Está bem, Axler dizia a si mesmo, estou numa fase ruim. Embora já tivesse mais de sessenta anos, talvez aquela fase passasse enquanto ele ainda se reconhecia como a pessoa que era. Não seria o primeiro ator experiente a viver uma situação assim. Aquilo já acontecera com muita gente. Já fiz isso antes, pensava, então vou encontrar um jeito. Não sei como vou conseguir desta vez, mas vou encontrar — a coisa vai passar.

Não passou. Axler não conseguia representar. Antes, como ele sabia prender todas as atenções no palco! E agora sentia pavor diante de cada apresentação, e o pavor se estendia ao longo do dia. Passava o dia inteiro tendo pensamentos que em toda a vida nunca tivera antes de uma atuação: não vai dar, não vou conseguir, estou interpretando os papéis errados, estou exagerando, estou falseando, não sei nem como vou fazer a primeira fala. E nesse ínterim tentava ocupar as horas se dedicando a uma centena de coisas aparentemente necessárias para se reparar: preciso estudar esta fala outra vez, preciso descansar, preciso me exercitar, preciso estudar aquela fala outra vez, e quando chegava ao teatro já estava exausto. E com pavor de entrar em cena. Sentia que a hora da deixa estava cada vez mais próxima e sabia que não ia conseguir. Esperava pela liberdade de começar, pelo momento de se tornar real, esperava a hora de esquecer quem ele era e se tornar a pessoa que estava interpretando, mas em vez disso estava ali parado, completamente vazio, atuando do jeito que se faz quando não se sabe o que se está fazendo. Não conseguia dar e não conseguia reter; não tinha fluidez e não tinha reserva. A atuação tornou-se uma tentativa, repetida noite após noite, de conseguir se livrar de um fardo.

Tudo havia começado quando as pessoas falavam com ele. Ele teria no máximo três ou quatro anos e já se sentia mesmerizado ao falar ou ouvir alguém falar com ele. Sentia-se dentro de uma peça desde o começo. Utilizava a intensidade da escuta, a concentração, do mesmo modo como atores menos talentosos usavam a pirotecnia. Possuía esse poder também fora do palco, principalmente quando mais jovem, com mulheres que não se davam conta de que tinham uma história de vida até o momento em que ele lhes mostrava que elas tinham uma história, uma voz e um estilo que não era de mais ninguém. Elas se tornavam atrizes com Axler, tornavam-se heroínas de suas próprias vidas. Poucos atores de teatro sabiam falar e ouvir como ele, e no entanto ele não sabia mais fazer nem uma coisa nem outra. O som que antes entrava em seu ouvido agora parecia estar saindo, e toda a palavra por ele pronunciada parecia representada, e não falada. A fonte inicial de seu trabalho de ator residia naquilo que ele ouvia, sua reação ao que ouvia estava no âmago da coisa, e se não conseguia mais ouvir, se não conseguia escutar, não podia mais trabalhar.

Foi convidado a interpretar Próspero e Macbeth no Kennedy Center — era difícil imaginar um programa duplo mais ambicioso — e fracassou vergonhosamente em ambos os papéis, mas em particular no de Macbeth. Não conseguia mais fazer Shakespeare de baixa intensidade, não conseguia mais fazer Shakespeare de alta intensidade — ele, que vinha interpretando Shakespeare a vida toda. Seu Macbeth saiu ridículo, e todo mundo que assistiu disse a mesma coisa, o que também foi dito por muitos que não assistiram. “Não, eles nem precisam ter assistido”, ele dizia, “pra insultar a gente.” Muitos atores teriam começado a beber nessas circunstâncias; segundo uma velha pia da, havia um ator que sempre bebia antes de subir ao palco, e quando lhe disseram que ele não devia beber, replicou: “O quê? E entrar em cena sozinho?”. Mas Axler não bebia, e assim simplesmente desabou. Sua queda foi colossal.

 O pior era que ele questionava sua queda tal como questionava sua atuação. O sofrimento era terrível, e no entanto ele duvidava que fosse genuíno, o que o tornava ainda pior. Não sabia como ia passar de um minuto para o próximo, tinha a sensação de que sua mente estava derretendo, sentia pavor de ficar sozinho, só conseguia dormir no máximo duas ou três horas por noite, quase não comia nada, todos os dias pensava em se matar com a arma que guardava no sótão — uma espingarda Remington 870 que ele mantinha naquela casa de fazenda isolada para se proteger — e no entanto tudo aquilo lhe parecia uma encenação, uma encenação ruim. Quando você representa o papel de uma pessoa que está entrando em parafuso, a coisa tem organização e ordem; quando você observa a si próprio entrando em parafuso, desempenhando o papel de sua própria queda, aí a história é outra, uma história de terror e medo.

Axler não conseguia se convencer de que estava louco, tal como não havia conseguido convencer ninguém, nem mesmo a si próprio, de que era Próspero ou Macbeth. Era um louco artificial também. O único papel que conseguia desempenhar era o de alguém que desempenha um papel. Um homem que não está louco interpretando um louco. Um homem estável interpretando um homem arrasado. Um homem controlado interpretando um homem descontrolado. Um homem de muitas realizações sólidas, famoso no teatro — um ator grandalhão e forte, um metro e noventa e dois de altura, uma cabeçorra calva e um corpo forte e peludo de arruaceiro, um rosto capaz de exprimir tanta coisa, um queixo decidido, olhos negros severos, uma boca de tamanho razoável que ele sabia retorcer de todas as maneiras, e uma voz grave, imperiosa, que emanava das profundezas, sempre com um toque de aspereza, um homem conscientemente grandioso que parecia capaz de enfrentar qualquer coisa e desempenhar com facilidade todos os papéis masculinos, a própria encarnação da resistência invulnerável, dando a impressão de que havia absorvido em seu ser o egoísmo de um gigante confiável —, fazendo o papel de um verme insignificante. Ele soltava um grito quando acordava no meio da noite e dava consigo ainda preso no papel do homem que foi privado de si próprio, de seu talento, de seu lugar no mundo, um homem abjeto que não passava do somatório de seus defeitos. Pela manhã, escondia-se na cama por horas a fio, mas em vez de esconder-se de seu papel estava apenas desempenhando-o. E quando finalmente se levantava, só conseguia pensar no suicídio, mas não no que a ideia tinha de estimulante. Um homem que queria viver fazendo o papel de um homem que queria morrer.

Enquanto isso, as palavras mais famosas de Próspero não o deixavam em paz, talvez porque tão recentemente ele as havia estropiado. Elas se repetiam com tanta regularidade em sua cabeça que acabaram por se tornar um tumulto de sons tortuosos, esvaziados de significado, que não indicavam nenhuma realidade e no entanto tinham a força de um encantamento cheio de significação pessoal. “Findou nossa função. Esses atores, / Tal como eu vos dissera, eram espíritos / Que agora somem sem deixar vestígio.” Não conseguia apagar a expressão “sem deixar vestígio”,que se repetia de modo caótico quando ele permanecia estirado na cama, impotente, todas as manhãs, e que tinha a aura de uma condenação obscura, embora cada vez fizesse menos sentido. Toda a sua complexa personalidade estava totalmente à mercê daquele “sem deixar vestígio”.