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“Primos” (Record) reúne contos de 18 autores brasileiros de ascendência árabe e judaica – cada um deles criou para essa antologia uma narrativa que retrata aspectos de sua cultura. “E por que exaltar suas desavenças, se os pontos de encontro são tão mais profundos e antigos?”, indagam as escritoras Tatiana Salem Levy e Adriana Armony, organizadoras da publicação. Elas também integram o elenco de autores que conta ainda com Samir Yazbek, Alberto Mussa e Moacyr Scliar.

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Confira trecho de um dos contos do livro

De canibus quæstio
Alberto Mussa
1
Quando a população de Máara ouviu falar dos tafur – nome proveniente de uma raiz árabe que significa “imundo” -, tinham eles acabado de tomar Antioquia. Eram um bando de selvagens cruéis e sanguinários, uma horda sem comando que misturava assassinos, ladrões, incendiários, profanadores de templos, violadores de mulheres.
Isso foi em meados de 491. Mas, como as luas passassem em nada acontecesse. Máara começou a imaginar que talvez fosse poupada, embora chegassem notícias de muitos vilarejos arrasados e da fuga de famílias inteiras para grandes cidades como Hama e Alepo, quando não buscavam o fundo interior da Síria.
Enfim, nos primeiros dias de 492, um tropel de cavalos alarmou as pessoas e três ou quatro cavaleiros, esbaforidos e cobertos de pó, entraram em Máara ordenando que fechassem as portas.
– os cães não tardam! – gritava um deles, Kulayb ibn Âmar, herdeiro imediato dos senhores de Trípoli, que vinha encabeçando alguns de seus primos para anunciar a aproximação dos tarfur.
Máara, cidade de 10 mil almas, não tinha exército. E a defesa – ou melhor -, a estratégia de defesa ficou entregue à meia dúzia de homens nobres (entre os quais os banu Âmar) e oaos milicianos locais, habituados a prender baderneiros e a conferir, nos mercados, a precisão das balanças. Assim, a força de resistência tinha de ser constituída por todos os braços válidos.
Mal haviam barricado as portas e disposto arqueiros nas poucas seteiras, as sentinelas divisaram os tafur. Eram, de fato, aterrorizantes. Pareciam cães. Mas eram milhares e estavam muito bem armados.
Máara trouxe o que pôde para cima dos muros: paus, pedras , facões e outros instrumentos de cozinha, martelos, ancinhos e machados, instrumentos que tivessem ponta ou fossem de ferro. Improvisaram um sistema de roldanas para fazer subir caldeirões de água fervente. Alguém teve a ideia de também levar betume.
Os tafur, por sua vez, estavam firmes no propósito de manter o cerco – até entrarem.  Levantaram tendas e começaram a construir duas fundas baleares. As flechas de Máara não chegavam a feri-los. Isso quando os alcançavam – pois a cidade não dispunha de arqueiros treinados.
Todavia, por não terem planejamento, por estarem tomados de um furor irracional, as primeiras escaramuças foram fracamente favoráveis aos sitiados. Um grupo de tafur – gritando medonhamente – tentou se aproximar com um arremedo de aríete, carregado nos ombros.
Não eram muitos; não representavam perigo (porque as portas estavam nem seguras). Mas os de Máara, no desespero, lançaram sobre eles dois caldeirões de betume, que incendiaram  com archotes.
Essa vinte ou trinta mortes não intimidaram os tarfur. Numa outra investida, quando pareciam querer cavar um túnel na base da muralha, foram escaldados e repelidos a pedradas.
Num outro ataque, depois de terem posto os fundibulários em ação – para abrir as posições de defesa -, dezenas de tafur ousaram apoiar escadas e escalar os muros. Foram rechaçados violentamente, dessa vez, embora as armas fossem as mais insólitas.
Esse episódio, contudo, foi particularmente desastroso, porque o estoque de betume fora muito reduzido e a cidade acabava de desperdiçar grande parte de seu arsenal – os tais arpões, serrotes e pichéis, atirados sem critérios sobre os agressores, não obstante os berros de advertência dos banu Âmar e dos outros comandantes. Nessa confusão, uns rapazes chegaram a arremessar colmeias.
Então, para espanto de todos, depois que as abelhas se dispersaram, aquela gente imunda se espojou sobre os favos destroçandos, lambendo mel misturado com terra, disputando cada naco de cera a golpes de espada. Morreram muitos assim, inclusive trespassados por seus próprios companheiros.
– Não são melhores que cães – dizia Kulayb ibn Âmar, observando a cena, horrorizado, do alto das muralhas.

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