Homens e mulheres têm diferenças fundamentais nesse sentido. Para começar, elas carregam mais pedras do que eles. O último estudo a confirmar essa crença popular foi publicado em 2010 no “Spanish Journal of Psychology”, pela Universidade do País Basco. A pesquisa também apontou que não há nada físico que predisponha as mulheres para a culpa ou imunize os homens dela. A diferença seria cultural, não biológica. Elas sentem mais culpa porque foram criadas para isso. A sociedade exige que as mulheres assumam mais responsabilidades e isso escancara a porta de entrada para a culpa. Karla Sabah, 47 anos, diretora de cinema e mãe de uma menina de 8 anos e de um adolescente de 16, está aprendendo a lidar com o sentimento. Seu ponto fraco é a relação com os filhos. “Às vezes passo semanas viajando a trabalho e quando volto percebo a falta que fiz”, explica. Algumas situações são especialmente cruéis. É comum, por exemplo, ela ouvir palavras da filha que não pertencem ao seu vocabulário, mas sim ao das ajudantes que cuidam da criança. Para equilibrar as ausências ela tenta aproveitar ao máximo os períodos em que está em casa. É uma das formas de lidar com a culpa dos pais (leia quadro com as dez culpas contemporâneas e como administrá-las na página anterior), compartilhada por tantas mulheres que precisam e gostam de trabalhar fora. Para a mexicana María Rosas, autora do livro “Mães Que Trabalham Fora, Cuidado com a Culpa” (Ed. Cengage, 2009), envolver os filhos nas atividades domésticas é uma saída. Mas a autora reconhece a dificuldade de libertação da mãe nessa situação. Ela mesma admite que sofreu ao deixar seus filhos em caswa para fazer um doutorado. “A gente se sente indigna das crianças”, diz. “Mas, por outro lado, até elas já perceberam o valor das mães que trabalham.”

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ECOLÓGICA
Oghan Teixeira desperdiça comida e se incomoda
com o impacto ambiental de sua empresa

Apesar de mais comum entre as mulheres, a culpa não é exclusividade feminina. O professor inglês Paul Morgan, 37 anos, que vive em São Paulo há nove meses, é prova disso. Ele saiu de Londres com o propósito de se misturar à cultura e ao idioma locais e não se fechar numa ilha britânica, com intérpretes por todos os lados. Mas é exatamente isso que tem feito e a culpa é descomunal. “Tenho aulas de português às segundas e quartas, mas não consigo estudar sozinho”, diz. Como ele, são muitas as pessoas que não conseguem completar um curso, aprender uma segunda língua ou ler o clássico esquecido na mesa de cabeceira – aí bate a culpa cultural. “Sair da zona de conforto tem seus benefícios”, lembra a psicóloga Cássia Franco. Para ela, o ócio é importante, mas há quem estacione nesse estado. “Definir prioridades é uma boa maneira de sair dessa imobilidade.”

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O ócio improdutivo também tem reflexo sobre a saúde. Apesar de multiplicarem iniciativas para tirar o brasileiro do sofá, muitos continuam sedentários. Segundo levantamento feito pelo Ministério da Saúde em abril de 2010, 16,4% da população não pratica atividade física, uma alta de 3,2% em relação a 2006. A combinação da consciência da necessidade de atividades físicas com a incapacidade para cumpri-las tem vários resultados. Um deles é a culpa. Essa sensação assombra o designer carioca Márcio Queiroz, 30 anos. Ele mora a 30 metros da academia, mas vez ou outra se entrega à preguiça e não sai de casa para treinar. “Se não vou pela manhã, já sinto culpa antes do almoço”, admite. À noite, tem certeza de que está alguns quilos mais gordo. “A barriga parece que inchou e a calça aperta na cintura”, diz. Segundo o cardiologista Fernando Lucchese, autor de “Desembarcando o Sedentarismo” (LP&M, 2003), a culpa por ser sedentário vem associada ao temor de ser obeso, um estigma moderno, e não há outra maneira de lidar com a situação a não ser encará-la como a catalisadora de uma mudança. “O sujeito precisa ver o exercício como um tratamento”, afirma.

Mas, muitas vezes, a preguiça vence. É ela que elimina a força de vontade que nos impele a mudar e, com isso, reduzir a culpa. Mesmo em um país católico como o nosso, onde pesa contra a preguiça a pecha de pecado capital, ela tem seu espaço. “Só uma pequena porção da culpa atual pode ser atribuída à Igreja”, defende o padre Márcio Fabri dos Anjos, professor de pós-graduação da Universidade São Camilo, em São Paulo. Para ele, a culpa católica tem pouca força perto das cobranças impostas pela sociedade moderna. Imposições essas perceptíveis até nos momentos de descanso. A empresária carioca Loezy Silveira, 46 anos, sabe disso. Ela não lembra quantas vezes chegou em casa com vontade de ir ao cinema ou sair para jantar, mas acabou fisgada pela dupla sofá e televisão. “Acordo no dia seguinte pensando em tudo que poderia ter feito e me sinto culpada”, diz.

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CONSUMO E LAZER
Joe Welsch compra quando não precisa.

Sentir culpa de sentir culpa é um problema comum. Para interromper o círculo vicioso vale lembrar que, para a psiquiatria, essa sensação não é de todo ruim. Em doses pequenas, é uma habilidade exclusiva de quem tem equilíbrio emocional. Os psicopatas, por exemplo, não sentem culpa. “Só tem essa emoção quem conseguiu desenvolver um sistema ético que guia as atitudes”, diz Antônio de Ávila Jacintho, professor do laboratório de psicopatologia da Unicamp. E como esse sistema não é inato, e sim desenvolvido, ele pode ser moldado. Prova disso é a flutuação das balizas éticas, que se criam e recriam ao sabor do tempo e da cultura.

Foi dessa maneira que surgiu uma nova expectativa social, a da responsabilidade ecológica. E com ela veio uma culpa que nossos avós nem sequer conheciam. O chef Oghan Teixeira, 28 anos, sofre da dor de consciência ecológica. “Na elaboração de um jantar para 50 pessoas, gasto tanta energia elétrica quanto uma família de quatro pessoas durante uma semana”, diz. Nos Estados Unidos, essa sensação tem nome: culpa verde ou ecoansiedade. Uma pesquisa do jornal “USA Today” revelou que, em 2008, 22% dos americanos padeciam dela. O assunto virou filão editorial, com títulos como “Bag Green Guilt” (Elimine a Culpa Verde, em tradução livre), de 2009, e “Green Mama” (Mamãe Verde, em tradução livre), de 2010. “Com mudanças simples você cuida do meio ambiente e diminui a sensação de culpa”, teoriza Jen Pleasants, autora de “Bag Green Guilt”, que no livro lista os cinco passos para se livrar dessa versão do sentimento.

Retrato tão bem acabado do mundo atual quanto a ecoansiedade é a culpa por consumir demais. Somos hiperestimulados a comprar. Temos mais roupas do que precisamos, trocamos de carro com muito mais frequência do que o necessário, tachamos nossos aparelhos eletrônicos de antiquados com poucos meses de uso. E, se não podemos fazer tudo isso, desejamos ardentemente fazê-lo. É a sociedade em que o ter se confunde com o ser. E, quando o descontrole se soma a todos os apelos consumistas, surge a culpa. A cantora Joe Welsch, 37 anos, por exemplo, é um caso clássico. Ela perde a razão diante de uma vitrine de sapatos. Seu closet tem 150 pares de sandálias, scarpins e botas, mas ela só usa 18. “Tenho 12 preferidos e outros seis que revezo nas minhas apresentações”, afirma. A ressaca consumista bate quando ela calça os sapatos pela segunda vez e percebe que perdeu o interesse. Para Tatiana Filomensky, psicóloga do ambulatório de transtornos do impulso do Hospital das Clínicas de São Paulo, controlar os ímpetos é difícil. “Mas a culpa é sinal de que a pessoa percebeu que alguma coisa está errada”, diz. Nem todos precisam buscar ajuda e podem evitar as compras desnecessárias com medidas simples. “Comprar é muito bom, mas os excessos devem ser tratados.” A culpa, consequentemente, diminui.

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CONSUMO E LAZER
Loezy Silveira se entrega à preguiça

Mas diminuir não é curar. E isso pode ser positivo. A culpa tem função importante em nossas vidas. Como tudo, porém, precisa ser administrada com cuidado para evitar excessos. Não é fácil em um mundo que por um lado cobra e por outro parece nos municiar com cada vez mais formas de não atender às suas complicadas expectativas. Mas aprender a lidar com o sentimento pode trazer serenidade. Pronto para diminuir o peso das suas costas?