Houve um tempo em que os pais de uma criança com síndrome de Down – o conjunto de alterações no organismo provocado por um distúrbio genético logo na geração – escondiam o filho da família e dos amigos. Algumas vezes por se sentirem mal, outras por desejarem preservá-lo, já que ele seria um ser frágil e pouco capaz de conduzir sua própria vida. O que fazer para livrá-lo de perigos a não ser afastá-lo da sociedade? Quanto engano! Por causa da evolução da ciência no entendimento da síndrome e das ações para inserir essas pessoas normalmente na sociedade, hoje elas estão mais atuantes. Todos esses avanços criaram uma geração down que usa sozinha o transporte público, pratica esporte, se diverte, trabalha, tem carteira assinada, recebe salário, namora e até se casa, algo impensável há uma década. Eles também estão vivendo mais tempo, mostrando com tudo isso que, ao contrário do que muitos acreditam, não são doentes. Os especialistas preferem classificar a síndrome de acidente genético e não de doença.

Um sinal de que as pessoas com Down estão vivendo melhor e com mais autonomia é o entusiasmo com que se referem a seus cotidianos. “Quero ganhar mais. Meu sonho é comprar um laptop”, comenta o carioca Thiago Pompeu, 23 anos. Funcionário contratado de um restaurante da tradicional rede carioca La Mole na zona sul do Rio, Pompeu conta que recebe belas gorjetas. E revela sua pretensão profissional: virar gerente da casa. Outro desejo é se tornar campeão de natação do Rio de Janeiro dentro do circuito paraolímpico Loteria da Caixa, disputado em diversas etapas no Brasil. Ele já participou de duas fases e trouxe cinco medalhas.

 

Histórias como essas, que não têm nada de down (ou para baixo, na gíria criada a partir do inglês), tornam-se mais comuns. Pais, familiares, médicos e cientistas estão aprendendo melhor a respeito da síndrome e de como lidar com as conseqüências desse acidente genético. Em 95% das vezes, ele acontece ao acaso e uma pequena parte é por herança dos pais. Um dos avanços foi perceber que o isolamento prejudicava em vez de proteger. “Quanto mais inseridos na sociedade melhor. Há maiores chances de a pessoa se desenvolver”, diz a médica geneticista Silvia Longhitano, coordenadora do ambulatório da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), em São Paulo. Para Glória Amato, presidente da Carpe Diem, uma instituição que trabalha com a inclusão social dessas pessoas, a independência é o objetivo. “A nossa luta é para que elas se tornem cidadãs autônomas integradas à comunidade”, reforça. A decisão recente de abolir as escolas para as crianças especiais, colocando-as em colégios comuns, segue essa tendência.

O trabalho de inclusão começa nos primeiros meses de vida pela estimulação precoce, os exercícios que facilitam o desenvolvimento físico, motor, intelectual e social. A paulistana Janaína Godoy, 21 anos, comprovou o quanto isso ajuda. Mãe da serelepe Júlia, dois anos, ela foi interpelada na rua por uma mulher curiosa em saber a idade da pequena. “Ela mostrou logo dois dedinhos”, orgulha-se. Desde os sete meses Júlia segue o programa de estimulação da Apae, que tem fisioterapia, fonoaudiologia, música e brincadeiras, entre outras atividades.

É importante ressaltar que os indivíduos com Down não apresentam diferenciações na anatomia do cérebro. O que ocorre é uma lentidão no desenvolvimento mental, provavelmente gerada por problemas genéticos. Os cientistas estudam minúcias biológicas para compreender por que as funções cognitivas são afetadas. Um dos últimos trabalhos nesse campo é o da Escola de Medicina da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. No início deste mês, os pesquisadores anunciaram ter descoberto uma possível causa da deficiência mental: um gene que, ao se manifestar em excesso no corpo, provocaria uma espécie de paralisia nos neurônios responsáveis pela atenção e memória.

O excesso de material genético interfere em outros mecanismos, que também estão sendo pesquisados. Algumas conseqüências são notórias, caso da obesidade. “Mas os diagnósticos são feitos cada vez mais cedo e isso tem permitido que essas pessoas vivam mais e melhor”, afirma a médica Elaine Rodini, coordenadora do laboratório de genética da Universidade Estadual Paulista, em Bauru. Ou seja, a criança Down de hoje completará mais aniversários do que as das gerações passadas. Segundo dados do Instituto Meta Social, outra entidade que batalha pela inclusão dos indivíduos com a síndrome, em 1947 eles viviam 15 anos na média mundial. Em 1989, a expectativa de vida passou para 50 anos e atualmente está em 70.

Apesar dessas vitórias, ainda há barreiras a superar. A atual novela global das oito retratará um pouco do preconceito e do desconhecimento da sociedade. No ano que vem, a escola de samba Império Serrano levará para a avenida um enredo que abordará a campanha do Instituto Meta Social: ser diferente é normal. “A campanha tem provocado mudanças no comportamento. Os pais, por exemplo, afirmam que se sentem mais à vontade de sair com os filhos”, diz a carioca Helena Werneck, coordenadora do instituto.

Muita gente se surpreende ao notar que esses homens e mulheres podem
trabalhar, estudar e namorar. Tudo depende de como foram estimulados. Mariana Amato, 27 anos, filha de Glória, da Carpe Diem, conseguiu emprego num banco na capital paulista, continua estudando e gosta de se divertir com os amigos e o namorado. Há uma semana retornou de uma viagem de férias que fez, sozinha, pela Paraíba. “Sou tão capaz quanto qualquer pessoa da minha idade”, crava. É bom esclarecer que não há graus na síndrome. Ninguém está com menos ou mais Down. Algumas pessoas têm mais capacidade para assumir responsabilidades, como administrar uma conta corrente, do que outras. Mas isso ocorre com todo mundo.

Constituir família é uma questão mais delicada. Não por que não possam ter bebês. O “detalhe” é que o filho de um casal com um dos parceiros Down tem 50% de chances de ter a alteração genética que causa a síndrome. Se os dois tiverem, a probabilidade sobe para 75%. Há dois anos e oito meses, Ariel Goldenberg e Rita de Cássia Pokk, ambos com 26 anos, se casaram. A paixão foi à primeira vista, mas o namoro só se firmou meses depois, numa festa. “Brindamos com refrigerante ao som da trilha do filme Titanic”, lembra Rita. A vida de casado não é diferente das demais pessoas. A dupla trabalha – ele, numa corretora de seguros, ela em uma drogaria. E tem um grande objetivo: comprar
uma casa. Quanto a ter filhos, não querem. “Fiz vasectomia. Tudo por amor a esta mulher”, declara Ariel. Um romântico, definitivamente.