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MUDANÇA
Marise teve sua casa no Morro do Urubu condenada
e alugou outra, que terá o aluguel reembolsado pelo governo

Em frente ao caminhão carregado com eletrodomésticos, roupas e outros pertences, o abraço emocionado de Marise Albuquerque em suas vizinhas selou o fim de sete anos de convivência e o início de uma nova etapa. Difícil, é verdade, mas bem melhor do que o assombro da morte eminente a cada pancada de chuva. A rápida e não planejada despedida de Marise se deu em razão do temporal da segunda-feira 5, causa da maior tragédia natural do Rio de Janeiro nos últimos 40 anos. Os alicerces de sua casa, pendurada no alto do Morro do Urubu, na zona norte da cidade, foram afetados e o desabamento poderia ocorrer a qualquer instante. Marise, 56 anos, sua filha, Elaine, 35, e os dois netos, Walace, 18, e Gérson, 15, são protagonistas do mais ambicioso projeto de transferência de populações de áreas de risco já executado no Rio de Janeiro, uma política irreversível e única, capaz de corrigir os erros e negligências de décadas, responsáveis pelas mais de duas centenas de mortes registradas no Estado há duas semanas.

“Dei R$ 50 a uns rapazes para que eles entrassem pela janela e retirassem minhas coisas, mesmo com a casa interditada”, conta Marise, operária do setor de embalagem. Poucas horas depois de o caminhão ser carregado, o imóvel foi demolido para evitar que outra família o ocupasse. A família se mudou para a casa de amigos. Mas ficou por pouco tempo. Elaine conseguiu uma nova moradia, pois irá receber do governo o “aluguel social” de R$ 400. Assim, na tarde ensolarada da terça-feira 13, a operária se instalou na favela do Batam, na zona oeste, a 50 quilômetros do Urubu, e fez sua cerimônia do adeus. Foi apenas uma entre os milhares de despedidas que começam a acontecer nas zonas de risco do Rio. Das 4.350 casas condenadas pelos técnicos, já saíram cerca de 15 mil pessoas, todas removidas para lugares mais seguros (leia quadro abaixo).

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NOVOS RUMOS
Morador de Niterói carrega sua caixa-d’água para local seguro: remoção em tempo recorde

A logística para retirar as pessoas das áreas de risco é grande. O trabalho precisa ser executado com rapidez, pois, apesar da pausa nas chuvas, vidas continuam ameaçadas. São 3,2 mil homens, 15 retroescavadeiras e 20 caminhões da prefeitura trabalhando incessantemente em 159 favelas. Da identificação dos imóveis comprometidos e retirada dos moradores até a demolição das casas, são consumidos cinco dias. Como todo processo revolucionário, dada a emergência da ação, a remoção das famílias que ocupam áreas de risco carrega consigo alguns problemas, que podem e devem ser sanados com o tempo. Depois de retiradas de suas casas, as famílias vão para abrigos improvisados em escolas, igrejas e clubes, ou para a casa de parentes. Mas já está definido que a reconstrução do futuro delas passará, obrigatoriamente, por alguma dessas opções: aluguel social (em que a locação de um imóvel é paga pelo governo), aquisição social (na qual a compra de uma casa nos mesmos padrões da antiga é coberta pelo poder público), indenização simples, transferência para unidades habitacionais de programas como o “Minha Casa, Minha Vida” ou as moradias construídas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão. Na quarta-feira 15, o governo do Estado anunciou mais uma opção. Irá construir dez mil casas populares em áreas ainda não definidas.

Ao trocar o Morro do Urubu pelo Batam, a operária Marise e sua família terão a rotina completamente alterada. Para chegar ao trabalho, ela e sua filha, que antes gastavam meia hora de ônibus, agora terão que enfrentar uma viagem mais longa. No trajeto atual está a avenida Brasil e seus constantes engarrafamentos. “Mudei para o Urubu justamente porque era perto do meu emprego”, lamenta Marise. Enquanto esperava a partida, ouvia histórias dramáticas de outros vizinhos, contadas ao som da retroescavadeira, que ao longe derrubava paredes e telhados. Genésio Anselmo, 78 anos, e a mulher, Alcina Rosa, 65, precisaram conversar por 40 minutos com os técnicos da prefeitura para aceitar sair da casa tomada por infiltrações. Não é difícil entender a ligação sentimental com a favela, por mais carente que seja o local. “No lugar onde essas comunidades estão instaladas há tantos anos está o seu mapa pessoal de existência”, define o geógrafo da Universidade Federal Fluminense Jorge Luiz Barbosa. Deixar o lugar onde se vive por décadas seguidas não é fácil para ninguém, mas mesmo a incerteza de não saber exatamente onde irá morar é melhor do que a certeza de que a cada chuva famílias poderão ser soterradas.

A remoção de agora é consequência de décadas de descaso do poder público. E está atrasada. O urbanista Pablo Benetti, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, destaca o que deveria ter sido feito já há muito, muito tempo. “Uma política habitacional e ações importantes, como o aperfeiçoamento do sistema de transportes públicos, por exemplo, algo que tornaria maior a área urbana.” Remoção é uma palavra que já foi associada a mudanças forçadas para os moradores de favela – e, por isso, amaldiçoada. Diante da tragédia das últimas semanas, porém, a simbologia é outra: significa salvar a própria pele. Para reinventar a vida, no entanto, ainda levará tempo até que as pessoas removam, também, as lembranças ruins da catástrofe que se abateu sobre o Rio, uma tragédia impiedosa com os moradores de encostas. O fim da operação de remoção é o reassentamento digno. É a construção de novos laços de amizade com vizinhos e comerciantes do bairro. Leva tempo, mas acontece.

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