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MISÉRIA
Menino experimenta sapatos em centro de triagem

"Aquela era a minha geladeira”, aponta Gildânia Lopes da Silva para um entulho sujo e retorcido, retirado da terra por uma escavadeira, no Morro dos Prazeres, em Santa Tereza, no centro do Rio de Janeiro. Gildânia, 40 anos, perdeu tudo: a televisão recém-comprada, os armários, as panelas, as fotos, os documentos, as roupas. Nos escombros também ficaram as duas filhas, Yasnaia, 19 anos, e Emília, que teria feito 14 anos na semana passada. Elas morreram junto com mais 28 pessoas soterradas no local devido aos deslizamentos de terra ocorridos após a forte chuva que caiu na cidade entre segunda- feira 5 e terça-feira 6. Morreram enquanto dormiam. “Minha vida foi soterrada. É uma dor sem fim”, diz. Gildânia só sobreviveu à tragédia, que deixou um saldo de 253 mortos em todo o Estado, porque foi tomar café na casa de uma vizinha. E ela não acha, ainda, que teve sorte.

Os sobreviventes que perderam casa e parentes estão na fase, agora, de elaborar as enormes lacunas afetivas, financeiras e referenciais. “Eu sempre me agarrei a Deus, mas agora parece que Deus não basta”, diz a empregada doméstica Maria Lúcia dos Santos, 37 anos, que enfrenta um câncer de mama e chorou muito ao ver a casa onde viveu durante duas décadas, no morro Sumaré, na zona norte, ir abaixo no meio da lama. No endereço, ela morava com o marido, um filho e três netos. Todos estão vivos, mas todos perderam tudo. A família, agora, está num dos 43 abrigos que deverão receber uma população de 11 mil pessoas, o Colégio Estadual Hebert de Souza, na Tijuca, zona norte. É lá, mesmo que, de forma desconfortável e improvisada, Maria Lúcia tenta voltar à rotina. Dorme em colchões de solteiro nas salas de aula transformadas em quartos, se alimenta no refeitório da escola e toma banho nos poucos chuveiros do local, se revezando com outras dezenas de desabrigados. Mas já voltou ao trabalho, assim como o marido, que é pedreiro. Pode, assim, retomar pelo menos parte da rotina que costumava chamar de normalidade, uma experiência ainda distante para muitos dos sobreviventes. Nos morros do Rio e Niterói, encontra-se o tempo todo gente que simplesmente não pode mais trabalhar porque não tem mais com quem deixar os filhos – a creche desabou, a vizinha que cuidava deles morreu, o pouco de amparo familiar que tinha foi soterrado.

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DESOLAÇÃO
Cátia perdeu a casa e o local de trabalho. No Morro dos Prazeres, moradores
fazem fila para tirar novos documentos

A cada dia aumenta o número de pessoas nas tendas de atendimentos para refazer seus documentos. Afinal, um registro de identidade, nessa hora, pode ser a prova necessária de que aquele indivíduo ainda é um cidadão, ou cidadã. Também no abrigo do Colégio Estadual Hebert de Souza, por onde já passaram mais de 500 vítimas dos deslizamentos, a família de Eugênia da Silva Fonseca, 71 anos, transformou em lar o que era uma sala de aula no terceiro andar da escola. Estão lá desde a terça-feira 6. São 15 pessoas dividindo um espaço de aproximadamente 20 metros quadrados. “O importante é que estamos vivos e juntos”, ela diz, repetindo a frase mais falada entre os que têm todos os parentes vivos.

Cátia Cristina Moraes, 45 anos, não teve essa sorte. Ela perdeu 15 parentes – entre eles o único irmão – no Morro dos Prazeres. Sobraram apenas ela, a mãe e o padrasto, além de sua cachorra, Lili, a amada vira-lata que ela protegeu entre os braços quando o teto desabou. O bar onde Cátia trabalhava, no mesmo morro, foi interditado. Sem casa, família, sem emprego, sem referências, ela tem dormido na casa de um amigo e passa o dia entre os vizinhos, recontando seu drama. E diz frases que podem remeter à culpa, sentimento comum entre quem sobrevive a tragédias nas quais muitos tiveram a vida ceifada. “Queria ter ajudado a salvar minha família”, lamenta-se.

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O aposentado Manoel Lopes da Silva, 60 anos, passa o dia cuidando da esposa, Dovalina Rosa da Silva, dois anos mais nova. Ela exige cuidados especiais por ser cega e ter o pé esquerdo amputado. A renda mensal do casal é de um salário mínimo. “Eu tinha acabado de pagar nossos móveis, era tudo parcelado. Agora não tenho nada”, diz ele. Na casa em que eles viviam, no alto do morro do Turano, no Rio Comprido, zona norte, o teto do quarto caiu e não os atingiu por sorte. Recomeçar, para o aposentado, será uma longa marcha. “A reconstrução não é apenas material. A tragédia maior é perder as rédeas da própria vida”, diz Pedro Paulo Bicalho, professor de psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Vi pessoas em total desalento que perderam a vontade de comer e até a noção de higiene pessoal”, diz o psiquiatra Sebastião Félix Pereira, coordenador de saúde mental de Niterói, município mais atingido do Estado. “Mas também vi quem perdeu tudo e estava apoiando os outros. Todo recomeço é possível”, arremata ele.