Na comédia há um momento para os atores que recria a imobilidade das aranhas. É o ponto necessário para que o riso corra solto plateia afora, o arremate para a piada. Se o texto é bem dito, se a respiração é correta, o riso espalha-se como a fumaça do gelo seco e vai envolvendo a plateia numa espiral arrebatadora. Os atores então param, porque a festa acontece bem a sua frente e quem é do palco sabe que não existe vibração mais bonita do que a de uma plateia que ri junto. É também no momento das aranhas que estabelecemos uma serena intimidade com aquelas pessoas e adivinhamos seus rostos na penumbra.

No meio do segundo ato de “A Gaiola das Loucas”, no libreto de Harvey Fierstein para a farsa de Jean Poiret, há uma frase que eu adoro. O travesti Zazá, rejeitado pelo filho do companheiro, que ele criou como mãe zelosa, após gritar sua indignação contra a ideia de ser excluído do noivado, acaba resignando-se a interpretar um travesti masculino para impressionar os pais da noiva do rapaz. Sentado no sofá, os olhos em busca de forças, ele diz a máxima: “Eu fui criada no cristianismo. Aprendi a ser humilhada em silêncio.” Noite após noite, Diogo Vilela reinventa aquela frase e o riso brota na plateia como uma cascata que ganha força no final, porque todos ali aprenderam a ser humilhados em silêncio e a gargalhada que cresce na caixa escura é de uma clareza libertadora. Aproveito a imobilidade do momento e corro os olhos pelos rostos que riem. É delicioso assistir ao vestir das carapuças e à reação a seguir. A frase cresce no interior de cada uma daquelas pessoas e a manifestação lembra uma panela de pipocas que começam a rebentar.

Temos sido todos humilhados em silêncio, eu penso, parado naquele palco. Nosso teatro, então, tem uma patética vocação para a coisa. Somos sempre os coitadinhos, os que reclamam, os que não têm nada. E continuamos humilhados em silêncio, porque as lamúrias preenchem outros vácuos. Eu, confesso, nunca tive vocação para isso. E continuo não tendo. Simone Gutierrez, a estrela de “Hairspray”, atualmente um dos maiores sucessos dos palcos paulistanos, uma atriz de imenso talento, uma cantora adorável e uma dançarina espetacular, não foi lembrada em nenhum dos prêmios (não são muitos, mas enfim!) que são oferecidos pela/para classe artística e que nos juntam a todos num mesmo saco de gatos. Por quê? Em nome de quê? É mais do que impressionante. É revelador. As acanhadas premiações deixam de fora o público, seu encanto e suas escolhas e o fim dessa história nós já conhecemos, porque indiferença não gera outra coisa. Fica o registro como um bisão na parede de pedra. O teatro só alça voo quando é plural, quando aquece a alma e nos incita ao sonho. Lutamos bravamente contra o avassalador crescimento da mídia eletrônica, resistimos e, paradoxalmente, estimulamos essa cotidiana humilhação em silêncio, rosnando uns para os outros nos bares da moda, incapazes de mudar o que quer que seja. Ou essa aldeia se abre para o futuro, ou está condenada ao desaparecimento como a mítica Macondo daqueles anos de solidão, eu penso, ainda parado no palco.

Aceitem a crônica como uma prece. Amém.