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MEMÓRIA
Com os filhos criados, Ingrid Koster decidiu rever
em uma
biografia a história de seu pai (abaixo)

Descendente de alemães e nascida no Paraná, Ingrid Koster, 81 anos, sabe como poucos o que é conviver com a sombra de uma dúvida durante toda a vida. Em 1942, aos 13 anos, ela assistiu a seu pai de criação, um alemão imigrado para o Brasil, ser preso pelo Exército do então presidente Getúlio Vargas em Joinville (SC) e lev ado para um campo de concentração na mesma cidade. Recaía sobre o homem que havia casado com sua mãe, a brasileira Ady, e assumido com prazer a condição de seu pai (Ingrid ficou órfã aos 10 meses), a pesada acusação de ser um espião nazista. Isso em plena Segunda Guerra Mundial e logo após o rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha. Ele permaneceu isolado por três anos, nos presídios de Joinville e Ilha Grande (Rio de Janeiro). Com o fim da disputa, e por causa da ausência de provas, o alemão reconquistou a liberdade. “Eu não concebia que alguém tão doce fosse um espião nazista”, diz Ingrid, que descreve o pai como um homem calmo, atencioso e gentil. “E essa contradição resultou numa dúvida que sempre me acompanhou.”

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O pai de Ingrid não colaborou para acabar com essa desconfiança que rondou sua família por décadas. Nunca negou nem confirmou a indigesta suspeita que pairava sobre sua biografia. E se calou sobre os anos de confinamento, que o transformaram num “homem diferente, sem alegria”, segundo a filha. Ingrid jamais teve coragem de insistir no assunto com o pai, morto em 1967. Casou, teve  uatro filhos, trabalhou como secretária bilíngue, mudou-se para a capital paulista, mas, volta e meia, era inundada por tristes recordações. Como quando sua casa era alvo de pedradas e pichações. Ou quando, dependendo de doações, tinha de enfrentar a ira de pessoas que se referiam a ela e a outros alemães como “Súditos do Eixo”. Até que, há oito anos, viúva, resolveu tirar a história a limpo. Decidida a vasculhar, literalmente, o baú de seu pai, ela contratou os serviços de uma das maiores especialistas em Segunda Guerra do Brasil, a historiadora Priscila Perazzo, doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). 

As memórias de Ingrid, amparadas pelorigor científico e o arcabouço teórico da historiadora Priscila, levaram a uma investigação profunda que resultou no livro “Ingrid, uma História de Exílios” (Editora Sagüi), a ser lançado no dia 15. E, após esse mergulho histórico, emergiram vários elementos que ligam o pai dela ao esquema de espionagem nazista. Karl von Schütze (o nome que está na obra é fictício, a pedido da família) foi funcionário de uma empresa alemã instalada no Brasil, presidida pelo principal articulador de uma rede de espiões nazistas no Brasil, o alemão Gustav Engels. Ambos foram presos na mesma época, no entanto, Engels foi condenado. No porão da casa do empresário, no Rio de Janeiro, foi encontrado um telégrafo, equipamento operado apenas por especialistas, usado para a comunicação com a Alemanha. Outra evidência que liga Schütze à rede era justamente sua experiência como telegrafista. Ele havia aprendido o ofício durante a Primeira Guerra, na Alemanha (emigrou para o Brasil em 1920), quando exerceu a função num submarino alemão U-Boot. Além disso, tinha o perfil de outros agentes infiltrados no Brasil: urbano, culto, educado e poliglota. “Ele foi um espião ou, ao menos, colaborou na rede montada no Brasil”, acredita Priscila, autora de livros sobre espionagem alemã e campos de concentração no Brasil. “Mas não é possível dizer a dimensão de seu trabalho.”

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APOIO
A historiadora Priscila Perazzo auxiliou nas questões históricas 
e no acessoa documentos da Segunda Guerra

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A dificuldade para traçar com fidelidade os passos de Schütze no País é grande porque, pouco antes de ser preso, ele queimou objetos que o ligavam à Alemanha. Só não teve coragem de atear fogo no seu exemplar de “Mein Kampf” (Minha Luta), praticamente a bíblia do nazismo, escrita por Adolf Hitler. Para Priscila, o fato de ele manter o livro, apesar do risco, não significa necessariamente uma adesão ao partido. “Apesar de a publicação ser um símbolo do nazismo, ela também expressa muitos sentimentos de identidade alemã”, diz. “Aquele país saiu humilhado da Primeira Guerra e Hitler o tirou da pobreza e o transformou em uma potência.” A historiadora defende, ainda, que os espiões nazistas no Brasil não compactuavam necessariamente com os métodos do ditador. “Daqui, era difícil saber o que se passava em território alemão”, diz, referindo-se às atrocidades cometidas contra os judeus.

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EM FAMÍLIA
Ingrid (no centro) vivia com a mãe, Ady, e o pai numa colônia de alemães em Joinville.
Com a Segunda Guerra, ela assistiu ao pai ser preso e à família desmoronar,
com a esquizofrenia da mãe e a falta de recursos em casa

Durante a Segunda Guerra, mais de 100 alemães foram confinados por suspeita de espionagem nos dez campos de concentração que o Brasil mantinha. Desses, cerca de 30 foram condenados a aproximadamente 30 anos de prisão. A espionagem alemã consistia, basicamente, em levantar informações políticas e econômicas do País e passá-las à Alemanha – via telégrafo, bilhetes codificados e cartas com tinta invisível. “Na época, Alemanha e Estados Unidos disputavam a economia brasileira”, diz a historiadora Priscila.

Apesar dos fortes indícios, a principal interessada em esclarecer os fatos ainda não se convenceu completamente de que seu devotado pai prestava serviços para um dos maiores tiranos da história da humanidade. “Quando comecei o projeto, pretendia acabar com minhas suspeitas”, diz. “Não consegui”. Ingrid, agora, compartilha com o leitor sua dúvida de vida. E, afirma: “Que cada um tire suas próprias conclusões.” 


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