Se os diplomatas sul-americanos tivessem a elegância dos urubus, estaria funcionando de pleno direito há tempos, nas duas margens do rio Iguaçu, um parque transnacional de fazer inveja ao resto do mundo. Mas, por enquanto, só parecem pensar nisso os urubus.

Ou, talvez, a fauna local em peso. A alada, pelo menos, pensa. E, com ela, parte considerável da flora transita igualmente de um lado para o outro, sem dar a menor confiança aos tratados de limites que teoricamente separam os dois parques.

Mas os urubus se expressam com mais eloquência em matéria de política externa. Moram num ponto espetacular da ilha de San Martín que, por ficar na margem argentina, é a primeira coisa que os turistas veem quando embicam para a trilha das cataratas na margem brasileira.

Os dois parques se devassam. Ambos vendem ingressos exclusivos com direitos implícitos de dar uma boa olhada no território do outro. Seus administradores tentam, mas não conseguem somar esforços. Os dois países ainda acham que fronteira é coisa de militares ou não teriam posto frente a frente o marechal Floriano da Fonseca e o comodoro Martín Rivadávia, guardando postumamente as margens do cânion. Em vão. Os saltos Floriano e Rivadávia são, sim, impressionantes. Mas seus nomes só servem para lembrar que quedas d’água não deveriam ter nomes de rua.

Os urubus adotaram, como endereço fixo, a Argentina. Passam o dia por ali, a menos que alguma carniça os convoque ao Brasil a negócios. Senão, aproveitam o primeiro sol da manhã, que vem de cá, para planar em espiral nas correntes térmicas que sobem diante das cachoeiras, teatralmente iluminadas por gambiarras de arco-íris que a névoa estende entre as pedras.

Como diria Tom Jobim, quem não gosta de urubu nunca viu um voar. Muito menos num cenário daqueles. A ilha, talhada em degraus por cascatas, deve ter até cadáver delivery, a julgar pelas ossadas de animais que se amontoam sob os poleiros. Oferece, de quebra, uma janela natural, cavada na rocha, com vista para o Brasil quase exclusiva.

Mas chega uma hora em que o sol vira. E, caindo na Argentina, sombreia a San Martín. Aí eles batem asas em bando, atravessam o rio, e vêm pegar no Brasil as rebarbas do dia, aquecendo-se nos galhos que a floresta pendura sobre o cânion. É o que se chama desfrutar o melhor de dois mundos.

E o que nós temos a ver com isso? A chance de reconhecer que os urubus têm razão. Os parques do Iguaçu e do Iguazu só funcionam porque estão juntos. Desmate-se um lado e o outro estará condenado a enfrentar o basalto nu. E aí não haverá água que conserte o estrago. Pela voracidade com que o oeste do Paraná desmatou o último toco de madeira nativa em meados do século XX, o que sobrou ao redor das Cataratas está ali por uma espécie de milagre.

Ou seja, o milagre da cooperação internacional involuntária. O primeiro hoteleiro a se aboletar no território brasileiro foi trazido da Argentina expressamente para isso, porque do lado de lá existia um hotel. Os argentinos fizeram seu parque em 1935.

Os brasileiros, em 1939, para não ficar tão atrás deles.
O resultado dessa rivalidade meio paroquial e às vezes mesquinha foi um parque transnacional pioneiro.
Só falta oficializá-lo, para o Brasil e a Argentina terem na América do Sul a última palavra em conservação da natureza. Mas isso exige políticos dispostos a voar tão alto quanto os urubus.