img1.jpg
NO ESPELHO
O pintor holandês em um de seus diversos autorretratos, gênero que o imortalizou

Um polêmico estudo da escritora e especialista em história da arte Svetlana Alpers atribui ao pintor holandês Rembrandt van Rijn (1606- 1669) o mérito (para alguns, demérito) de criar um sistema de comercialização de suas obras que é precursor do que hoje se conhece como mercado de arte. No livro “O Projeto de Rembrandt – O Ateliê e o Mercado” (Companhia das Letras), a autora narra a consolidação do estilo e do método de trabalho do artista em quatro capítulos. Primeiro discorre sobre a sua técnica de pintura para depois analisar o seu trabalho com os retratados no ateliê, usando princípios que trouxe do teatro. Na sequência, a autora estuda o gerenciamento de sua oficina, à qual incorporou muitos aprendizes, para culminar na última parte, em que procura investigar como Rembrandt valorizou suas telas e conseguiu ao longo de sua vida aumentar a demanda por seus trabalhos no mercado holandês e europeu. Intitulou essa conclusão de “Liberdade, Arte e Dinheiro”. Svetlana mostra como as condições que definiram o estilo do artista e o imortalizaram como gênio das artes encerravam também uma semente revolucionária que transformaria o antigo modelo de produção, controlado e patrocinado pelos mecenas culturais. À frente de seu tempo, ou apenas pragmático, Rembrandt era avesso ao mecenato – queria ter controle sobre os seus quadros e ganhar dinheiro com eles.

img.jpg
GÊNIO MODERNO
Especialista em Rembrandt, Svetlana Alpers mostra como ele sempre foi avesso ao mecenato

Atuava como um marchand de si próprio. Como escreve Svetlana: “Ele não foi apenas um homem de ateliê, também foi um homem de mercado. Segundo a famosa frase de Adam Smith, ele tinha uma vocação para ‘negociar, permutar e trocar’, e para criar obras que convinham a esse tipo de transação.” Tanto que nas fases de sua vida em que enfrentou dificuldades financeiras o artista usou suas telas para pagar dívidas. Ao contrário dos críticos modernos, que veem na interpretação de Svetlana uma “análise materialista” da relação de Rembrandt com o mercado de arte, o próprio pintor aparentemente não via problema nenhum em tratar as suas telas como mercadoria. Era um artista requisitado para pintar retratos de comerciantes, médicos, açougueiros e militares e foram os retratos que fez de seus contemporâneos que lhe renderam a fama que até hoje perdura. De seu lado, os modelos não dedicavam a Rembrandt tratamento diferenciado e muitas vezes se queixavam de não se sentirem plenamente representados nos quadros em sua imponência ou dignidade. Rembrandt tinha a seu favor o método que vigorava ainda no século XVII, em que a assinatura de uma tela era, não importando quem a tivesse pintado, do dono do ateliê. O artista teve dezenas de aprendizes e manteve um acelerado ritmo de produção. Mas nunca se descuidou de se distinguir, “de ser fiel a si mesmo e, em suas obras da maturidade, de constituir um eu” – esse que ele queria que seus alunos aprendessem e o mercado também soubesse discriminar. Por isso mesmo hoje é comum reconhecer que o século XIX modelou o mito do gênio solitário a partir da vida e da arte de Rembrandt.

Nas palavras da autora: “Não é verdade que os quadros do mestre holandês criam um efeito de singularidade e de individualidade que nos dão a sensação de uma presença humana quase tangível ou material, feita de tinta?”. A autora aponta aqui um paradoxo: essa aposta na autenticidade de suas pinturas que lhe conferiu uma espécie de marca registrada e criou uma forma diferente de comercializar arte no século XVII seria contestada três séculos mais tarde, num outro contexto social e artístico. Em 1985, uma análise técnica revelou que a clássica tela “Homem com Elmo Dourado” não fora pintada por Rembrandt, mas provavelmente por um de seus alunos, assistentes ou discípulos. A notícia surpreendeu estudiosos e levantou suspeita sobre outros trabalhos – que se confirmaram em pelo menos duas obras famosas (“O Cavaleiro Polonês” e “Davi e Saul”) e inclusive em alguns autorretratos – símbolo maior de sua expressão artística. O episódio afetou o valor de suas telas no mercado de arte atual: entre as 100 obras mais valiosas do mundo, um único Rembrandt está listado e na 77ª posição – é “Saint-Jacques Le Majeur”.

img2.jpg