i63925.jpgNo final dos anos 80, a vida do paulista João Baptista Gelpi não conhecia a palavra trabalho, comprometimento ou privação. Ele deixou o Brasil depois de furtar algumas telas valiosas que estavam em sua ex-mansão em São Paulo, imóvel que fora comprado por um velho amigo de seu pai – e a esse amigo pertenciam também as obras de arte que ele surrupiou. Gelpi é herdeiro de uma milionária família que enriquecera, segundo ele mesmo admite, superfaturando obras e subornando autoridades para participar de projetos faraônicos, como a construção de Brasília e da Rodovia Presidente Dutra. Chegou a passar no vestibular da Escola Politécnica da USP, mas não cursou sequer o primeiro ano e dilapidou grande parte de sua fortuna numa vida totalmente desregrada. Por isso o furto na mansão. E assim partiu para Londres, onde pretendia vender as telas e retomar seu estilo de vida: muitas festas, programas com mulheres, boas bebidas e viagens. O que Gelpi nem sequer vislumbrava é que o destino tinha outros planos para ele: a sua insaciável sede de aventuras o levaria a uma situação-limite que arruinaria definitivamente a sua vida.

Gelpi desceu ao inferno no dia 6 de janeiro de 1994. Vivia então na Tchecoslováquia, tinha 50 anos e selou um pacto de morte com sua noiva, a jovem Lenka, de 17 anos. Ela foi encontrada morta apunhalada, e ele, ferido por uma espada, conseguiu ser salvo no hospital da prisão de Pankrác, em Praga, capital da atual República Tcheca. Acusado de assassinato e condenado a 13 anos de prisão, cumpriu seis, ganhou a liberdade e em 2000 retornou ao País. O encontro de Gelpi com a bela, loira e misteriosa Lenka, 33 anos mais jovem, e o desfecho trágico e desolador do romance que eles viveram estão relatados no recém-lançado livro autobiográfico Morrer em Praga – uma trágica história de amor (Geração Editorial, 224 págs., R$ 26, co-autoria com a escritora Jeanette Rozsas). Trata-se de uma obra que se lê com misto de fascínio, apreensão e terror, como alerta a apresentação. E é difícil sair indiferente dessa leitura que nos coloca em contato com uma história de vida revelada sem “panos quentes”, numa crueza arrepiante. O autor expõe suas maiores fraquezas e contradições, sem autopiedade nem orgulho delas, enquanto narra suas aventuras. Gelpi viveu num ritmo eletrizante. O seu texto no livro mantém essa “adrenalina”.

Logo após acatar o desesperado desejo de Lenka de que eles morressem juntos, Gelpi escreve: “Voltamos para casa com o novo projeto a preencher nossos vazios. Já que a vida não dera o que dela esperávamos, fosse lá o que fosse, agora teríamos uma nova perspectiva. Mais uma vez eu buscava razões para existir. Dessa vez, seria a última.” A ponta do novelo dessa loucura, na verdade, começou em Londres, quando ele, entediado, colocou um anúncio num jornal chamado The loop – reunia endereços de jovens de diversos países que desejassem se corresponder com pessoas estranhas. Compulsivo sexual assumido, presumiu que seria um bom caminho para conhecer muitas parceiras e fez publicar as seguintes palavras: “Venha e curta o caos de minha vida louca.” A mensagem chegou a Lenka, que morava em Praga, e, depois de algumas cartas trocadas, Gelpi foi ao seu encontro.

Segundo o autor vai revelando aos poucos, ele tinha ao seu lado uma jovem profundamente deprimida que necessitava de tratamento médico, mas se deixou enredar pelo sentimento de solidão e abandono (que também sentia profundamente) e em alguns meses estavam vivendo como se um não existisse sem o outro. No seu julgamento, Gelpi foi acusado pela mãe, uma psicóloga e duas psiquiatras. Testemunharam a seu favor o pai de Lenka (policial) e alguns vizinhos, que afirmaram que a moça era bem tratada por ele e que o casal parecia se amar. Na trágica cena final descrita no livro, o casal toma remédios para dormir e morrer, mas a dose é insuficiente. “Seria uma morte limpa”, escreve ele. Lenka acorda gemendo, desperta-o e implora que ele faça alguma coisa. “Não vou saber porque as lembranças se eclipsaram de tal forma que não consigo dizer o que foi sonho, realidade, alucinação”, escreve Gelpi. Ele somente se recorda de ter pego uma espada e se autolesionado. “Se eu matei Lenka, só Deus sabe. Ela foi encontrada morta, com o punhal de pára-quedista enterrado no peito.”