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Na cozinha, o chef, sozinho, costuma preparar o prato pedido pela maioria dos clientes que lotam o restaurante. Só assim, protegido do olhar potencialmente traidor de seus ajudantes, ele evita que sua receita acabe pirateada em cardápios alheios. Mas, como em todas as outras atividades sujeitas à cópia, também a gastronomia não consegue evitar a pirataria descarada. O francês Roland Villard, do luxuoso Le Pré Catelan, no Rio de Janeiro, teve uma de suas criações, o purê de batata baroa defumada, copiada sem os devidos créditos – e reclama da falta de respeito entre seus pares. “Não é vergonha ter outro chef como referência. Criar a partir do que se vê faz parte do progresso da gastronomia. Mas há uma diferença entre a simples repetição e a reinterpretação”, afirma Villard.

O impasse esbarra na vaidade dos chefs, que querem ter sua criatividade reconhecida. Responsável pela cozinha do restaurante carioca Garcia & Rodrigues, o francês Christophe Lidy se sentiu traído ao descobrir que um amigo havia publicado em uma revista uma receita sua: uma salada de presunto cru, tomate seco e folhas verdes com molho de sorvete de iogurte. “É até uma honra quando alguém utiliza uma receita minha e dá o crédito. Não dar crédito é que é feio. É uma questão de (des) respeito”, afirma, sem identificar quem pirateou sua criação. A praxe é pedir autorização ao colega antes de incluir um prato dele no cardápio. E citar seu nome no título, claro. O mesmo vale para livros de gastronomia. A gaúcha radicada em São Paulo Carla Pernambuco não quis comentar o assunto, mas já processou uma editora que reproduziu a receita de seu suflê de goiabada sem o devido crédito. O delicado suflê criado por Carla é a sobremesa mais famosa do restaurante Carlota, que nasceu na capital paulista e hoje tem filial no Rio de Janeiro.

Se a receita só servisse de inspiração para outro prato, o crédito já não seria necessário, na opinião da chef carioca Flávia Quaresma, do Carême Bistrô. Da França, onde estudou gastronomia, ela importou as influências para inovar em seu serviço de bufê, criando canapés posteriormente copiados pela concorrência. “Nunca tive vergonha de dizer que trouxe essas idéias de fora, mas adaptei tudo ao meu jeito. Fazer exatamente igual é deselegante. O profissional mesmo é aquele que se inspira em alguma coisa e tenta fazer o próprio caminho”, diz ela. Chef do Agraz, restaurante do hotel Caesar Park de Ipanema, Helbert Moura concorda. E põe lenha na fogueira: “Um chef não copia o outro. Quem copia é amador, um mero cozinheiro sem qualidades criativas.”

Caberia processo para casos de pirataria na cozinha? Muito difícil. Talvez por isso não haja registros de pendengas judiciais em gastronomia, ao contrário da música e da literatura, áreas em que é mais fácil provar o plágio. A legislação brasileira não impede o registro de patente de uma receita. Para ser reconhecida como tal, porém, ela teria de preencher requisitos dificilmente alcançáveis por uma criação gastronômica. “O prato teria que pressupor uma atividade inventiva, precisaria ser muito diferente dos já existentes. Não é só ser inédito, é ser criativo”, ressalta o advogado Rodrigo Ouro Preto Santos, do escritório Siqueira Castro e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC), ambas no Rio. Basta mudar um ou outro ingrediente para que uma receita, mesmo patenteada, seja imitada sem que isso configure uma infração à lei.

Mas, como em tudo, só se copia o que é bom, e os chefs admitem: na imitação há um reconhecimento. Porém, o melhor mesmo é ter seu nome em cardápios País afora – em alguns casos, além das fronteiras também. O problema, muitas vezes, é que alguns superestimam o próprio talento, como explica a carioca Andréa Tinoco, dona de um dos bufês mais badalados do Rio de Janeiro: “Alguns chefs acham que criaram, mas não criaram. Quem faz um pato com jabuticaba em vez de utilizar a tradicional laranja não cria um prato novo, mas faz uma releitura de um que já existe”, frisa.

Até porque, ressalta, como na moda, na gastronomia também há tendências. Se a receita não for muito diferente, corre-se o risco de que, em outro país ou mesmo em outra cidade, alguém tenha tido a mesma idéia. Preocupar-se com imitações é, para ela, uma perda de tempo. “Por mais que se copie, o prato nunca vai ficar igual, porque cada chef tem sua técnica. O importante é a execução, por isso a gente estuda. A imitação é um estímulo para se superar sempre”, defende.

FOTOS: ALEXANDRE SANT’ANNA/ AG. ISTOÉ; HÉLCIO NAGAMINE/AG. ISTOÉ