Uma nova era descortina-se à nossa frente: bandas eliminam as gravadoras ao venderem suas músicas diretamente na internet, leitores transformam- se em jornalistas ao suprimirem os tradicionais meios de comunicação e relatarem fatos e opiniões em blogs. Agora, este movimento acaba de chegar às artes plásticas. O inglês Damien Hirst, o enfant terrible dos animais conservados em formol, estantes repletas de comprimidos e caveira cravejada de diamantes, protagonizou um marco na história da arte na semana passada. Ele pôs à venda na Sotheby’s de Londres 223 de suas obras, pelas quais arrecadou US$ 200 milhões, um recorde para um leilão de um único artista, que pertencia a Picasso pela comercialização de 88 peças por US$ 32 milhões em 1993. A maior façanha, porém, foi vender a produção sem expô-la previamente em uma galeria, eliminando a figura do marchand.

As obras oferecidas no leilão de dois dias, intitulado Beautiful Inside My Head Forever (em tradução livre, Lindo em Minha Cabeça para Sempre), foram todas confeccionadas nos últimos dois anos. Cerca de 21 mil pessoas conferiram-nas antes da venda em 11 dias de exibição em um prédio reformado pela Sotheby’s especialmente para receber as peças. A mais cara foi o Bezerro de ouro, um touro em um tanque de formol com cascos, chifres e a cabeça coroada por um disco de ouro. O trabalho alcançou US$ 18,6 milhões, um recorde em leilões para o artista de 43 anos que completa duas décadas de carreira. Há 20 anos, ocorreu a exposição Freeze, em Londres, que lançou Hirst e o grupo dos "jovens artistas britânicos", do qual ele se tornou o maior expoente.

"É uma maneira muito democrática de vender arte e parece uma evolução natural da arte contemporânea", disse o artista inglês horas antes do leilão. Ele trabalhava com dois marchands, da Galeria Gagosian, de Nova York, e da White Cube, de Londres, e decidiu eliminá- los do jogo por considerar a comissão abusiva – gira em torno de 50% do valor da obra. "É uma ousadia, um teste de mercado que deixa a pessoa muito exposta, por isso artista vivo prefere um caminho mais cauteloso", diz Kátia Mindlin, da área de leilões da Sotheby’s no Brasil. Embora contem-se nos dedos os artistas que teriam bala na agulha para sustentar uma venda deste tipo, a iniciativa de Hirst abre um importante precedente. Ela pode incentivar outros a colocar peças em consignação para casas de leilão e não para galerias de arte. Há rumores de que o japonês Takashi Murakami será o próximo a embarcar nesta onda.

Hirst elegeu a morte como tema central de seu trabalho. Na série Natural History (História Natural), por exemplo, animais como tubarão, vaca e ovelha são conservados – às vezes cortados – dentro de tanques de formol. Ele coleciona polêmicas e já teve proibida a exibição de suas obras por autoridades de Nova York.

Badalado no circuito das artes e marqueteiro de mão cheia, o enfant terrible é hoje um dos homens mais ricos da Grã-Bretanha. Sua fortuna, antes do leilão, era estimada em US$ 364 milhões. Casado com a americana Maia Norman, é pai de três filhos. Desde o nascimento do primogênito, há 13 anos, ele se divide entre a casa de campo, de 300 anos, no sudoeste da Inglaterra, e seu gigantesco estúdio, nos arredores de Londres. É nesta catedral da arte que ele desafia as sensações humanas.