chamada.jpg
o avô alexandre
Um inseparável rosário dá-lhe força para reerguer a vida destruída

Não tem jeito, não tem cura: quando o barulho ritmado de motor de helicóptero se faz ouvir, uma senhora em São Paulo, avó de uma neta assassinada, entra em pânico e se tranca no quarto – “aquele rápido tá-tá-tá-tá-tá-tá no ar, repetitivo, é como se caísse dentro de mim feito bala de metralhadora. Eu choro de medo”. Essa senhora tem quase cinco décadas de vida.

Muito aquém dela na idade, mas na mesma São Paulo, há uma menina de 9 anos que tem medo de passar os finais de semana com o pai – ele é separado da mãe e a garotinha não gosta muito da madrasta: “Se o pai da Isabella fez isso com ela, o meu pai pode fazer isso comigo também.”
Agora, segure-se a respiração. Ou tome-se aqui a expressão máxima do dramaturgo Oduvaldo Viana Filho: rasga coração.
– O seu pai pode fazer o quê?
– Me matar.

img4.jpg
o avô nardoni
A sua casa tornou-se uma mórbida atração turística

Que desespero para um pai saber que sua filhinha tem medo dele porque outro pai monstruosamente assassinou a filha – seja esse o pai que for. Que desespero para uma filha não ficar à vontade com o pai pelo mesmo motivo. E assim se vai, de desespero em desespero, de volta aos personagens. A senhora do helicóptero se chama Aparecida e é a mãe de Alexandre Nardoni: ou seja, é avó da garotinha Isabella, brutalmente assassinada no final de março de 2008 ao ser arremessada pela janela do apartamento no qual estava sob a guarda de seu filho e da madrasta, Anna Carolina Jatobá. O trauma que Aparecida tem do ronco do motor funcionando e da hélice girando vem do aparato policial que à época do crime era mobilizado para proteger Alexandre, então o principal acusado do assassinato, juntamente com a madrasta – a multidão queria esfolá-los vivo. Já a menina que até hoje hesita em ficar sozinha com o pai chama-se Carolina e foi colega de Isabella na Escola Cantinho da Alegria, na zona norte da cidade. O tempo para a pequenina Carolina parou. Tomam-se esses dois exemplos extremados, o da avó e o da ami­guinha, para se mostrar o quanto a morte de Isabella ainda machuca, marca e altera a vida de todos aqueles, parentes ou não, que conviveram com ela. A mãe biológica, por exemplo, Ana Carolina Oliveira, e a avó Rosa Maria, que tatuou em seu braço a palavra “Isa” e tornou-se uma incansável guerreira para que trancafiem o assassino pelo maior tempo possível. Há também as professoras, os amiguinhos e amiguinhas. Há os pais de Alexandre, que são Antonio e Aparecida Nardoni. E há os pais da madrasta Anna Carolina, dois jovens avós, nenhum sequer na casa dos 50 anos – a filha deles tem dois meninos com Alexandre e esses avós são Ana Lúcia e Alexandre Jatobá. Para todos, menos para os assassinos, vale a mais dolorosa e exata definição que o compositor Chico Buarque já deu de saudade: “a saudade é o revés do parto/a saudade é arrumar o quarto/ do filho que já morreu”. Ou, como diz Alexandre Jatobá, “depois que Isabella partiu, me alimento de saudade. E alimentar-se desse sentimento é viver com o peito arfando e sem conseguir respirar direito. A saudade dói fisicamente, tira o ar”.

img3.jpg
Revolta Desde 2008, a avó materna de Isabella,
Rosa Oliveira, luta pela condenação do criminoso

Há exatos dois anos, a vida do avô Jatobá congelou: o seu amplo apartamento que ia ser reformado ficou com as paredes lixadas e o chão raspado (chão de madeira que tem seu nome, jatobá), as cortinas foram retiradas, mas nada de tinta, de cera ou de enfeites novos na sala. A sua mulher, Ana Lúcia, sai de casa “à moda das mulheres que cobrem o rosto o máximo possível” para preservar a si com a missão de preservar os dois netinhos quando os leva à escola ou à psicóloga. E há um ponto em comum descoberto pelos Nardoni e pelos Jatobá: é como se Isabella, morta, apontasse-lhes o dedinho a mostrar mazelas familiares e temperamentos que deviam ser apurados. “Hoje tenho temperança e aprendi a ouvir as pessoas”, diz Jatobá. “Deixei de ser impulsivo, sou mais tolerante”, diz Nardoni. “A vida não mudou apenas na rotina porque todos os finais de semana visitamos nosso filho na penitenciária onde está preso. Mudou também no sentido com que olhamos a própria vida.” No campo mais pragmático, Nardoni enfrentou doenças, microcirurgias, perda de clientes em seu escritório de advocacia. A sua residência se tornou ponto turístico e é bastante comum ver-se casais parando o carro em meio à rua (estreita), saírem do veículo, namorado apontando a casa para a namorada. Vem então a frase inevitável:

– É aquela ali.
Não só ele, o pai de Alexandre, teve a vida marcada. A sua filha, Christiane, sentiu na pele os colegas e professores da faculdade se dividirem, balança que pesou mais para o lado daqueles que lhe viravam o rosto. Foi-lhe difícil a formatura, também em direito, mas ela conseguiu. Casou e levou consigo a missão de ajudar a cuidar de dois sobrinhos como se fossem seus filhos: “Faço isso com alegria e de coração aberto.”
“Foi difícil no início, e agora, com o julgamento, voltou tudo de novo”, diz Francine Scarela Agostinho, mãe da garotinha Carolina – aquela que tem medo do pai. “As crianças estão vendo o julgamento na tevê e novamente começaram a chegar à escola ouriçadas”, diz Elenice dos Santos, diretora da escola Cantinho da Alegria. “A Carolina anda perguntando se a Isabella está assistindo ao júri lá do céu.” Pela sensibilidade que as crianças têm, e que talvez só elas saibam sentir sem saber explicar, as suas falas se aproximam sem que uma sequer conheça a outra. O filho mais velho de Alexandre Nardoni e de Anna Carolina Jatobá, com 5 anos de idade, também perguntou esses dias se a “Isa é uma estrela no céu e vê tudo aqui na Terra”; e o filho mais novo, 3 anos, desconcertou a avó: “A mamãe já está chegando?” Também a diretora Elenice vive a contornar a mesma pergunta que lhe é feita pelos seus pequenos alunos: “Tia, quando a Isa vai voltar?”
Se existem colegas que até hoje perguntam por Isabella, outras lembram dela no silêncio. É questão de temperamento ser mais ou menos ensimesmada. Júlia, por exemplo, foi uma das melhores amigas de Isa. A sua avó Matilde Pompílio de Oliveira conta que foram ao zoológico e, de repente, a menina ficou quieta demais, triste até.
– O que aconteceu, perguntou-lhe a avó.
– É por causa da Isabella, rememorou a Júlia.

img2.jpg
terapia No Colégio Isaac Newton,
o assassinato de Isabella foi discutido pelos professores com os alunos

Entre os adultos, também o silêncio tem sido muitas vezes uma constante, mas, ao contrário do mutismo das crianças, neles há uma ponta de precaução – poucos querem falar ou se envolver no caso Nardoni, tal a atrocidade do crime. Uma mulher que prefere se identificar somente como Lúcia conta que Ana Carolina Oliveira mudou-se de endereço e agora, na garagem de sua ex-casa, funciona uma malharia que pertence aos seus pais. “A Ana andou sumida por um bom tempo e mesmo quando estava em casa não saía, ficava trancada, principalmente à noite.” Em outro endereço, o da rua Santa Leocádia, 138, no qual fica o edifício em que Alexandre e Anna Carolina moravam e no qual Isabella foi morta, também poucos falam e, dos que falam, ninguém dá o nome. O prédio agora possui filmadoras por todos os cantos e seus muros têm sistema de segurança elétrico (nada disso havia na noite em que Isa morreu). Teve a mesma sina da casa do Nardoni pai. “Muitos carros ainda param aqui, sempre à noite, e seus ocupantes ficam horas olhando e apontando para o sexto andar. É de lá que a menina foi arremessada”, diz um morador.
– Qual seu nome?
– Nem sonhar. Nossa vida já está para sempre mudada.

img1.jpg
Trauma
Carolina, 9 anos (abaixo), tem medo de passar os finais de semana com o seu pai

A terapia do silêncio, no entanto, nem sempre é a melhor saída. Segundo Lissandra Garcia, mãe de uma aluna (não quer dar o nome da filha) do Colégio Isaac Newton, onde Isabella também estudou, a direção da instituição acertou quando fez uma reunião com os alunos. Tudo foi explicado e o assunto acabou relativizado. Mesmo seguindo esse método, no entanto, o colégio viu que a trágica, louca e bárbara circunstância de morte de Isabella se fez presente. “Na escola há uma professora chamada Paula. Ela entrou em estado de choque e durante uma semana ficou afastada das aulas”, diz Lissandra. Na verdade, em estado de choque ficou, e permanece, a professora e o colégio, o colégio e São Paulo, São Paulo e todo o País. É como se todos nós “arrumássemos o quarto do filho que já morreu”.
Colaboraram: Alan Rodrigues e Verônica Mambrini