A escritora chilena lança um novo livro autobiográfico e diz que homens e mulheres precisam compartilhar a gerência do mundo

A estréia de Isabel Allende na literatura aconteceu tarde, aos 39 anos. Mas seu primeiro livro publicado, A casa dos espíritos, correu o mundo, ganhou versão para o cinema e foi traduzido para dezenas de idiomas. O sucesso na esteira do realismo fantástico – movimento literário de grande visibilidade nos anos 60 e 70 – permitiu que ela abandonasse o jornalismo e abraçasse a literatura. Agora, aos 66 anos, lança o romance A soma dos dias (Editora Bertrand). A narrativa autobiográfica começa na hora em que a família se reúne para espalhar as cinzas de Paula, protagonista do livro de memórias homônimo. Nele, Isabel relata a dor da perda da filha, que faleceu aos 29 anos de uma doença rara.

A soma dos dias recupera a história do amor de Isabel e seu segundo marido, o advogado e escritor William Gordon, entremeando- a com lembranças de pessoas próximas incorporadas à família e outros personagens. Está entre essas memórias a viagem dela ao Brasil, na qual conheceu o escritor Jorge Amado. A sobrinha de Salvador Allende, presidente chileno morto durante o golpe em 1973, tem raízes no Chile, mas morou em outros países e está radicada nos Estados Unidos há 20 anos. É lá que seus laços mais fortes estão hoje: seu filho e netos moram a três quadras da casa dela.

ISTOÉ – A soma dos dias marca o fim de um ciclo temático?
Isabel Allende

Espero viver vários anos mais e espero que sejam anos divertidos. Assim, poderei escrever outro livro de memórias.

ISTOÉ – Muitas vezes, seus livros começam sem planejamento, a partir de uma carta pessoal, por exemplo. Como sabe que terminou?
Isabel Allende

Talvez nunca se termine um livro, simplesmente me dou por vencida. Sempre se pode acrescentar alguma coisa, corrigir ou modificar, mas chega um momento em que sinto que comecei a perder a espontaneidade e a me cansar dos personagens. Aí quero expulsá-los de minha casa. Em geral, os finais são abertos, não há conclusões dramáticas.

ISTOÉ – Sua literatura está cheia de elementos espirituais. Como é sua relação com a religiosidade?
Isabel Allende

Não pertenço a nenhuma religião, porque são todas patriarcais, criadas pelos homens para controlar outros homens e, sobretudo, para controlar as mulheres. Mas acredito que temos alma e que há um espírito em tudo que existe. Eu preciso de algum tipo de prática espiritual. Gosto de certos rituais porque me deixam centrada, me permitem acalmar, me concentrar, me separar do ruído e da agitação do dia. Por isso medito.

ISTOÉ – Hoje, a situação política da América Latina é bem diferente de quando você começou a escrever, e as fronteiras ideológicas estão mais fluidas. Ainda faz sentido falar em esquerda e direita?
Isabel Allende

Já não se usam esses termos, mas hoje ainda existem diferenças fundamentais entre o pensamento político puramente capitalista e o que defende a justiça social. O ideal é uma combinação.

ISTOÉ – A literatura ainda precisa da política?
Isabel Allende

Só posso falar dos meus livros. Meus personagens sempre estão inseridos em uma realidade política e social. A política afeta nossas vidas, para mim é impossível ignorá-la, mas meus escritos não são políticos.

ISTOÉ – O universo feminino tem papel central em seus livros. Acha que a competição entre os sexos já foi superada?
Isabel Allende

O movimento de libertação feminina foi a revolução mais importante dos últimos séculos, mas ainda falta muito para alcançar equanimidade, equilíbrio, igualdade e justiça entre os sexos. Não concebo o feminismo como uma competência ou uma guerra entre homens e mulheres. Acredito que a humanidade precisa superar o estado de adolescência em que vivemos atualmente e alcançar maturidade, dar um salto evolutivo. Para que isso ocorra, homens e mulheres devem compartilhar equanimemente a gerência do mundo, porque os valores masculinos e femininos são igualmente necessários. O patriarcado foi desastroso e está na hora de terminar com ele, mas a solução não é substituí- lo por um matriarcado.

ISTOÉ – Como você percebe o impacto dessa transição nos homens?
Isabel Allende

Os homens passaram por um longo período de confusão quando se sentiram atacados pelo feminismo. Muitos adotaram, à força, valores femininos, mas o curioso é que as mulheres começaram a tratá-los como fracos. Por sorte essa confusão está se resolvendo, pelo menos no mundo ocidental, e os homens que hoje têm entre 20 e 40 anos já não passam por esses problemas e estão muito confortáveis em seus papéis masculinos. Essa visão de que as mulheres são melhores do que os homens, mais generosas, compassivas, abnegadas, leais, é um clichê. Homens e mulheres são diferentes, mas no plano espiritual, muito parecidos.

ISTOÉ – Na literatura, a igualdade de gênero já chegou?
Isabel Allende

Mais mulheres compram romances do que homens, e por isso existem mais autoras hoje do que no passado. Contudo, o mundo da literatura ainda está dominado pelos homens. A maioria dos críticos e professores é de homens e os livros usados nas escolas e universidades são 95% de autores do sexo masculino. Uma mulher tem que fazer o dobro de esforço que faz qualquer homem para obter a metade do respeito e reconhecimento em qualquer campo, incluindo a literatura.

ISTOÉ – Quais são as prioridades para termos igualdade de gêneros?
Isabel Allende

Acesso à saúde e à educação antes de mais nada – e isso inclui acesso aos métodos contraceptivos. Em seguida, é preciso alterar as leis para proteger as mulheres que são vítimas de práticas religiosas e culturais horrendas, desde a mutilação genital até ter de vender as filhas como servas, casá-las à força antes da puberdade, obrigá-las a viver sob um véu escuro e negar-lhes os direitos humanos mais fundamentais.

ISTOÉ – Como a cultura americana e seu casamento com William Gordon mudaram suas raízes hispânicas?
Isabel Allende

Minhas raízes continuam sendo chilenas e escrevo sempre em espanhol, mas já faz 20 anos que moro nos Estados Unidos e sem dúvida minha vida e minha maneira de escrever receberam uma forte influência desse país. Sou cidadã americana. Falo e trabalho em inglês o tempo todo e isso mudou minha forma de escrever em espanhol. Agora sou mais direta, concisa, econômica com os adjetivos. A diversidade nos Estados Unidos e em especial na Califórnia me ajuda muito no meu trabalho, porque me permite apreciar diversas culturas.

ISTOÉ – Como vê a postura dos candidatos à Presidência dos Estados Unidos com relação aos imigrantes?
Isabel Allende

Meu candidato é Barack Obama, mas quem quer que seja eleito presidente terá de encarar o problema dos imigrantes ilegais de uma maneira eficiente e humanitária. Atualmente, os imigrantes não têm direitos básicos, ganham salários miseráveis e não têm previdência. Os empregadores aproveitam a situação desesperada desses trabalhadores para pagar o mínimo possível e cometer abusos. A lei sempre castiga o trabalhador, nunca o empregador. Nos últimos meses têm acontecido blitze em muitos Estados e milhares de pessoas foram deportadas, famílias se separaram, crianças, inclusive bebês, foram abandonadas.

ISTOÉ – O que está ocorrendo de relevante na literatura mundial hoje?
Isabel Allende

A explosão da literatura latinoamericana já passou. Não existe o interesse que existia 15 anos atrás por nossos autores. Agora, o interesse está na Ásia e no Oriente Médio, zonas de conflito, em que existem grandes mudanças. Por isso, a nova geração de autores latino-americanos, salvo algumas exceções, tem dificuldade de encontrar mercado para suas obras fora do continente.

ISTOÉ – Após a publicação de Paula, surgiram a Fundação Isabel Allende, e A soma dos dias, e muitos leitores falaram da conexão deles com a história de sua filha. O que esse livro significa para você?
Isabel Allende

Recebo muitas cartas de leitores e 80% delas são de pessoas que leram Paula e se sentiram tocadas pela história de minha filha. Graças a esse livro, estou conectada com milhares e milhares de leitores. Sinto a presença de minha filha, é minha companheira, minha amiga. Em homenagem a ela existe uma fundação que ajuda mulheres e crianças, e isso também me dá muita satisfação.

ISTOÉ – Por causa de Paula conhecemos muitos detalhes de sua história com sua filha. Como é sua relação com seu filho?
Isabel Allende

Nicolás é minha alma. Ele mora com sua família a três minutos da minha casa, e eu o vejo quase todos os dias, nos falamos por telefone o dia todo, nos ajudamos no que podemos. Sua esposa, Lori Barra, é minha melhor amiga e gerencia a fundação.

ISTOÉ – E como é a Isabel avó?
Isabel Allende

Adoro meus netos e os mimo demais. Eles me divertem e me surpreendem, porque sabem muito. As crianças de hoje, conectadas na internet, têm um poço insondável de informação. Todos os anos saímos de férias em família para algum lugar distante, onde não tenha televisão, internet, celulares, nada disso, e nos obrigamos a conversar, ler e nos divertir juntos. Isso nos uniu bastante.

ISTOÉ – Quando começou na literatura, pensava aonde chegaria?
Isabel Allende

 Ninguém pode saber o que o destino trará. Meu primeiro romance (A casa dos espíritos) foi recusado por várias editoras antes de ser publicado na Espanha. Ainda lembro da minha felicidade ao ver o primeiro exemplar. Senti que havia alcançado o momento culminante da minha vida, que nada melhor poderia me acontecer. Nunca sonhei que ele seria traduzido para 30 idiomas e que se tornaria tão popular.