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Em plena temporada de furacões, o mercado financeiro dos Estados Unidos foi sacudido por um terremoto. O 14 de setembro entrou para a história como o domingo sangrento, noite em que os americanos dormiram certos de que a Bolsa de Nova York passaria por péssimos momentos na manhã seguinte. E as piores previsões se confirmaram. Não bastasse a decisão do governo Bush de não socorrer o banco Lehman Brothers, soube-se que a seguradora AIG, a maior do mundo, estava em risco e que a tradicional corretora Merrill Lynch também ia mal das pernas. O abalo na confiança foi imediato e fortaleceu o sentimento geral de que o efeito dominó da crise do mercado imobiliário, chamada de subprime, ainda está muito longe de terminar. Desde a derrubada das torres gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, não se via tanta tensão. O índice Dow Jones caiu 4,41% e o S&P 500 desa bou 4,71%. No Brasil, a Bovespa sofreu baixa de 7,6%, a maior dos últimos sete anos. Porém, apesar do nervosismo, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, relativizou o problema: "Em outra situação, estaríamos de quatro."
Confiante em que a economia brasileira resistirá bem, o presidente Lula abriu a seqüência de ironias contra o império cambaleante. Disse lamentar o fato de que "bancos importantes, que passaram a vida dando palpites sobre o Brasil estejam quebrando". Merrill Lynch, por exemplo, mede o afamado risco Brasil. Lula afirmou que os efeitos sobre o País "serão quase imperceptíveis". E brincou com os jornalistas: "Crise? Que crise? Vai perguntar para o Bush." A frase de Lula, dita durante reunião no Chile sobre a crise na Bolívia, correu o mundo na sua tradução para o inglês: "What crisis? Go ask Bush." Foi publicada em vários jornais americanos.
Desde os anos 80, a economia americana vive uma oscilação errática. Em 1987, abalada pela inflação, viu o dólar perder fôlego e as Bolsas naufragarem. Em 2001, estourou a bolha da nova economia, comandada pelas ações das empresas da internet. Todo mundo avisou que era espuma, mas foi preciso que as ações virassem pó. Agora, os EUA vivem o interminável rescaldo do subprime. Bem que o governo Bush se esforçou ao injetar US$ 30 bilhões no banco Bear Sterns e nacionalizar as companhias hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mac, graças a um desembolso de US$ 200 bilhões. Foi surpreendido, porém, com o pedido de ajuda do Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimento americano. E, acusado de estar socializando prejuízos, num anátema para o liberalismo econômico, recomendou que o Lehman buscasse uma solução de mercado. O banco entrou em concordata. "O que estamos vendo são as conseqüências dessa decisão", comentou o economista Paulo Nogueira Batista Jr., representante do Brasil no FMI. "Nunca vi em toda a minha vida uma situação tão grave, e olha que eu já vi muita coisa."

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Com a quebra do Lehman Brothers, o governo Bush concluiu que era preciso intervir, mesmo que isso contrariasse o ideário republicano. "A queda de Wall Street representa para o fundamentalismo do mercado o que a queda do Muro de Berlim representou para o comunismo", decretou Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia. O Tesouro e o Federal Reserve deram as costas para a tradição conservadora e trataram de corrigir os desvios. Como primeiro passo, foram aplicados US$ 85 bilhões na AIG, numa semi-estatização da seguradora. Caso ela quebrasse, milhões de americanos que ali fizeram sua previdência privada ficariam sem sua aposentadoria, num empobrecimento em massa. As autoridades também convenceram o banco inglês Barclays a adquirir parte do Lehman Brothers. A tradicional Merryll Lynch foi comprada pelo Bank of America, por US$ 50 bilhões, e a Goldman Sachs negocia uma fusão com o banco Wachovia. Estuda-se solução para o Morgan Stanley, que deve se associar ao China Investment Corp., fundo que já havia comprado 9,9% do Morgan em dezembro. Ou seja, um dos ícones do capitalismo financeiro americano vai ser comandado pelos comunistas chineses. E outro banco em dificuldades, o Washington Mutual, entrou em negociação com o Citigroup e o Wells Fargo.

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Economistas passaram a comparar o estrago atual à crise de 1929, que provocou uma onda de falências e suicídios. "Essa é uma crise de 1930 a conta-gotas", verberou a explosiva Maria da Conceição Tavares. Preocupados em evitar esse tipo de comparação, o Federal Reserve e os bancos centrais do Canadá, da Grã-Bretanha, da União Européia, do Japão e da Suíça injetaram mais US$ 200 bilhões nos mercados para pôr fim à crise de liquidez. Ela é resultado da profunda desconfiança reinante no mercado. Como ninguém sabe o tamanho do buraco do concorrente, os bancos em boa situação simplesmente não emprestam seu dinheiro – o que gera um tranco geral e acaba comprometendo até quem não tinha problema financeiro. Com a ação conjunta e a decisão do governo Bush de criar uma agência para absorver ativos podres, as Bolsas finalmente deram sinal de reação mais firme na quinta-feira 18. Na sexta-feira 19, a Bovespa chegou a atingir uma alta de 9,75% em sua abertura.
Aparentemente, as bilionárias transfusões de dólares dos bancos centrais estancaram a hemorragia do domingo sangrento. Na Europa, observadores já fazem previsões otimistas. Um deles é François David, presidente da Coface, uma das maiores seguradoras de crédito comercial do mundo. Segundo David, a economia mundial enfrenta três choques simultâneos: o bancário, o imobiliário e o inflacionário. Entretanto, existem fatores que atenuam a crise. E talvez o principal deles seja a situação financeira das empresas da economia real, muito mais sólida do que à época da crise da nova economia, em 2001. A taxa de autofinanciamento médio dos empreendimentos nos EUA subiu de 75% em 2001 para 92% hoje, na Europa passou de 72% para 88%. David lembra também que os países emergentes respondem por 40% da economia mundial e que a participação dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) dobrou desde o início do século. Para ele, não vamos ter nem tsunami financeiro nem recessão: a economia mundial vai crescer no mínimo 3%.

Se o Brasil dificilmente sairá incólume de uma crise econômica mundial de maiores proporções, é certo que nunca esteve tão preparado para enfrentar turbulências. O País desfruta de reservas superiores a US$ 200 bilhões, o PIB cresce a 6,1%, a taxa de desemprego é de apenas 8,1% e o mercado interno ganha novos consumidores, graças às políticas públicas e ao ciclo positivo da economia. "O sistema financeiro aqui está sólido", diz o ministro Guido Mantega. "Talvez tenhamos alguma escassez de crédito internacional, não do crédito local." Se isso vier a acontecer, o BNDES e o Banco do Brasil podem ser acionados para aumentar seus financiamentos. Existe, sim, a questão da apreciação do dólar no curto prazo, em razão das remessas de investidores estrangeiros para cobrir prejuízos no Exterior. Mas, por contraditório que pareça, o Brasil é beneficiado na medida em que a desvalorização do real favorece as exportações de bens manufaturados. O que vem compensar o efeito da queda no preço das commodities agrícolas. Para dar mais liquidez, o governo promoveu leilões de venda de dólar. Há um consenso entre os economistas de que o País continuará crescendo, mesmo diante de uma desaceleração mundial. No plano da política monetária, o Banco Central, de Henrique Meirelles, já tem atuado de modo austero, com seguidas altas dos juros para conter a inflação em 2009. Portanto, o presidente Lula pode continuar a perguntar: "Crise? Que crise? Go ask Bush".

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